
*José Alcimar de Oliveria
01. O título acima me veio da memória do livro Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador escrito por Albert Memmi (1920-2020), grande pensador tunisiano do colonialismo.
Publicado em 1957, no contexto da luta pela independência dos países africanos, até hoje pilhados pela Europa, esse livro é pouco conhecido e menos ainda lido. Há no Brasil duas edições, uma traduzida por Roland Corbisier e Mariza Pinto Coelho, de 1967, e outra, publicada em 2007, traduzida por Marcelo Jacques de Moraes e prefaciada por Jean-Paul Sartre.
Meu contato com esse livro se deu em 1978 por graça de um grande amigo, Lourival Holanda, ex-professor da Ufam, quando à época eu iniciava o Curso de Filosofia e Teologia no antigo CENESCH, em Manaus.
02. Que relação há entre o livro de Memmi e o título desse breve artigo, 63 anos depois? O termo precedência. É pouco? Não. É muito mais que um jogo de conceitos. O engodo da educação a distância (EaD), hoje potencializada pela entusiástica recepção e incorporação das tecnologias mediáticas, é agora alavancado pela pandemia do coronavírus. Mas ao vírus não cabe culpa nenhuma.
No possível pós-vírus fala-se da emergência do dito novo normal. Se no normal pré-vírus, sem o qual não seria possível a pandemia coronavirana, a EaD já fazia escola, com o vírus que exige o distanciamento social, essa modalidade chega ao topo da cadeia predatória da didática exigida pela gramática do capital. A EaD revestiu-se de prerrogativas de messianismo pedagógico.
03. Se natura non facit saltum, menos ainda o complexo devir das relações sociais. O vírus é o movente que faltava para o pretenso salto. Mas bem antes, muito antes de se discutir EaD, o Estado brasileiro já havia consolidado um eficiente e abrangente processo de distância da educação.
Antinomicamente a programada distância da educação já adquirira precedência anti-ontológica sobre a EaD. De má árvore não se pode esperar bons frutos.
A paternidade política e social – em nada responsável do ponto de vista ético – que a EaD encontra no longo projeto histórico de distância da educação não se explica senão pela exclusão histórica do direito à educação que nossa jovial, boçal e positivista burguesia impôs à maioria do povo brasileiro.
04. O analfabetismo no Brasil nunca foi residual. Não é um acidente processual. É um projeto, como certeiramente afirma Darcy Ribeiro. Em seu primeiro discurso como Senador da República, em 20 de março de 1991, ao invocar o nome de seu “querido mestre Anísio Teixeira – a consciência mais lúcida” que ele conheceu, o genial Darcy afirma: “juntos (Anísio e eu), dedicamos inúmeras horas a tentar entender como o Brasil consegue a façanha de criar e manter uma escola pública tão desonesta que, repelindo a maioria de seu alunado, oriundo das camadas mais pobres, se incapacita para generalizar a alfabetização. Compele deste modo a maioria dos brasileiros à triste condição de marginalizados culturais de nossa civilização letrada”.
A EaD, hoje preconizada pelo entusiasmo de nossos tecnocratas letrados, nenhum formado a distância, é a filha bastarda, mas legítima, da meiaeducação (para aqui lembrar do grande Durmeval Trigueiro) promovida pela “escola pública desonesta”, sempre eficiente em manter o povo à distância da educação.
05. A recente Portaria de nº 544, de 16 de junho de 2020, do Ministério da Educação e Cultura, dá bem a medida da pressa desinibida a que a tecnocracia recorre para impor soluções autoritárias a questões que exigem o exercício do uso público e dialógico da razão, para aqui recorrer ao velho Kant.
Ainda que tenha caráter autorizativo e excepcional, não é por meio de uma Portaria que se pode, sem levar em conta a realidade objetivamente posta da grande maioria dos estudantes, substituir aulas presenciais por aulas em meios digitais.
A realidade social brasileira, marcada pela desigualdade, com suas contradições históricas, não pode ser abstraída por nenhum instrumento jurídico. Lei nenhuma tem poder de criar, por decreto, condições sociais que não existem.
Insisto sempre no princípio da precedência ontológica do real sobre o legal. Essa Portaria consegue ser mais regressiva do que o Decreto 9.057, de 25 de maio de 2017, também do MEC, que, ao regulamentar a EaD, ao menos preconiza para essa modalidade a garantia de “pessoal qualificado, com políticas de acesso, com acompanhamento e avaliação compatíveis”.
06. A EaD, por mais sofisticadas que sejam a formulação e suas plataformas digitais, não pode prescindir, do ponto de vista da emissão, da realidade social dos receptores. Mesmo em condições ideais, a EaD já implica uma agressão ontológica e pedagógica ao reduzir a educação como relação dialógica entre sujeitos a uma equação funcional entre emissor e receptor.
É um paradoxo social, e tecido de violência simbólica e material, propor a modalidade da EaD como medida para diminuir a distância entre educação e povo quando mesmo a educação presencial é marcada pela política da meia-educação ou, segundo Adorno, semiformação.
O que diminui a distância da educação não é a EaD, mas a materialização da educação – e quando digo educação, digo educação presencial – como direito universal, e não privilégio de classe. Educação pública, universal, laica, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada na classe que vive do trabalho.
07. Não nos é permitido retroceder às conquistas do iluminismo. Quem desdenha do iluminismo, faça sua aposta na ignorância, e verá o preço. É das mãos e sabedoria de Immanuel Kant o mais belo e educativo texto sobre o valor da educação. Escrito em 1783, é considerado o texto programático do iluminismo. Educação como esclarecimento. Educação para a autonomia. Educação fundada no uso público da razão. Kant considerava um crime de lesa-natureza negar ao povo o sagrado direito ao esclarecimento.
O velho Marx, nosso incontornável Mouro de Trier, conferiu ao projeto kantiano, ainda limitado por uma concepção formal e abstrata da razão, o fundamento da práxis.
À dialética abstrata de Kant e à dialética idealista de Hegel, Marx, ao definir o ser humano como ser social, ser da práxis, que se constrói pelo trabalho, pensa a dialética como materialismo histórico e a história como materialismo dialético.
Nós professores, como intelectuais coletivos das classes subalternas, somos desfiados a ir além de posições reativas e defensivas, e afirmar os princípios históricos da educação presencial e, mesmo na discussão de atividades remotas ou da dita educação a distância, nunca permitir que essa modalidade de ensino – porque educação é outra coisa – venha a extrapolar os limites de sua natureza complementar.
* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, junho do ano coronavirano de 2020.