A Filosofia, a bandeira e o vermelho da vida, da alegria e da luta

Imagem: rosa vermelha (www.adf.org.br)

*Por José Alcimar

          01. Criado pela UNESCO em 2002, o Dia Mundial da Filosofia é comemorado na terceira quinta-feira do mês de novembro. Nesse 2020, e marcada pela pandemia do coronavírus, a comemoração da Ave de Minerva coincide com o Dia da Bandeira do Brasil que, para parte da direita e a totalidade da ultradireita, nunca será vermelha.

Algo estranho nessa fobia ao vermelho, porque a cor da vida e da luta está presente em mais da metade das bandeiras das nossas unidades federativas. Em pelo menos dez delas (AL, AM, BA, MA, MG, PA, PR, RS, SC e SP) a cor vermelha é realçada, especialmente na da Paraíba.

Vermelho é o sangue dos mártires e sem o vermelho que beleza haveria nas rosas? E a mais vermelha das Rosas, Rosa Luxemburgo, poderia desvestir-se do vermelho? A Eucaristia dos cristãos católicos subsistiria sem o vermelho do sangue do martírio de Jesus de Nazaré?

          02. E a Filosofia, em seu devir histórico, dos Pré-Socráticos ao Brasil atual e sob ostensivo domínio do obscurantismo que a cada dia trama a mutilação das asas da Ave de Minerva, poderia ser pensada sem a resistência vermelha e dialética do iluminismo, que faz a ponte entre o pensamento de Heráclito, na Grécia Antiga, e Florestan Fernandes, o mais irredento dentre os pensadores revolucionários do Brasil contemporâneo?

Como pensar o vermelho do sangue da resistência indígena e negra à brutalidade da colonização de Nuestra América, Ameríndia e Afro, sem uma Filosofia que reconheça no saber dos povos originários um estatuto epistêmico tão fecundo quanto aquele de matriz cartesiana?

O saber em proveito do homem, conforme definição platônica da Filosofia, seria menos filosófico entre os povos indígenas das Américas do que o de matriz helênica?

          03. O Dia Mundial da Filosofia deve ser antes de tudo o dia da exaltação do pensamento e da sabedoria dos povos. Não pode ser um dia helênico nem eurocêntrico, com a devida vênia de Heidegger, para quem a Filosofia é algo geneticamente grego.  

Nenhum povo é destituído de bom senso ou, numa interpretação limitada de Descartes, teria sido o bom senso partilhado exclusivamente na Europa?

A composição helênica da palavra Filosofia não significa que o constitutivo ontológico indicado pelas duas palavras gregas – amor e sabedoria – seja um apanágio da Hélade. Há Filosofia fora do termo Filosofia. As águas dos rios da Hileia não são menos dialéticas ou heurísticas do que as águas dos rios heraclíticos da Hélade. O que lá flui para cá conflui e inversamente.

Se a verdade é o modo de ser do real, onde houver esforço honesto de pensar o real, aí haverá Filosofia.

          04. Comemorar o Dia Mundial da Filosofia implica reafirmar o direito do povo à educação. Quando integral e ao promover a necessária formação omnilateral, em contraposição à unilateralidade da instrução para o mercado de trabalho, a educação já será em si mesma filosófica. Educação e Filosofia confluem para a afirmação do que o Marx dos Manuscritos denomina de natureza genérica humana.

Não é destino do ser social limitar a riqueza de sua existência genérica ao enjaulamento requerido pela produção do valor de troca. Nascemos não para produzir mercadorias, mas antes para produzir nossa existência como espaço da formação humana. A gramática do capital sempre depõe contra a natureza da omnilateralidade do processo educativo e, por consequência, por travar o pensamento, impede a formação da consciência filosófica. A formação omnilateral é, pois, o início, o processo e o fim da Educação e da Filosofia.

          05. A gramática do capital é intrinsecamente antieducativa e antifilosófica. É impossível nos limites do sociometabolismo da produção capitalista afirmar o trabalho como princípio educativo e filosófico. A lógica do capital alimenta e se alimenta do trabalho alienado.

Não é gratuito o medo que a direita e tanto mais a ultradireita têm da Educação e da Filosofia. Desse medo nasce a organização política do ódio que outra coisa não é senão o fascismo.

O Dia Mundial da Filosofia, como dia essencialmente educativo, é dia de afirmar a luta contra o fascismo, que não viceja sem o ódio ao pensamento. A Filosofia é sempre a ponte fecunda e festiva que permite o encontro entre a verdade e o real. Nietzsche, o filósofo matinal da afirmação da vida, associava o pensar à festa e à alegria. Todos os regimes e governos autoritários e ditatoriais, retensivos e ressentidos que são, cultivam ódio mortal à alegria e à festa, portanto, à Filosofia.

          06. Quanto mais a Filosofia se aparta do mundo da vida, do mundo do trabalho, e se encastela nos aposentos do produtivismo acadêmico, tanto mais a classe que vive do trabalho desconfia das intenções, por melhores que sejam, do mundo intelectual.

É célebre a carta que Joseph Dietzgen, operário do Curtume Vladimir Vlassili Ostrov, de São Petersburgo, enviou a Marx em 1867: “Perdoe-me, prezado senhor, pela presunção de tomar seu tempo e atenção. Pensei ser capaz de dar-lhe satisfação pela prova de que a Filosofia de um trabalhador manual é mais clara do que a média dos filósofos-professores de nossos dias. Eu daria mais valor à sua aprovação do que ao convite que alguma academia erudita pudesse fazer-me, para que me incluísse entre seus membros”. Para Dietzgen, “o fundamento de toda ciência reside no conhecimento do processo do pensamento. Pensar significa desenvolver o geral a partir do que é dado pelos sentidos, do particular”.

          07. É de conhecimento comum que Marx, cujo doutorado versou sobre a diferença entre as filosofias da natureza dos pensadores gregos Demócrito e Epicuro, nunca frequentou academias nem submeteu sua monumental produção filosófico-científica aos cânones restritivos da intelectualidade universitária. Soube como poucos superar as armadilhas tanto do teoricismo quanto do voluntarismo.

Por isso, pela aderência crítica e destrutiva a que submeteu o objeto de seu pensamento, o devir do modo de produção capitalista, é de longe o mais dialético entre os pensadores de todos os tempos. É dele, segundo Kopnin, a mais importante conquista do pensamento filosófico: “a incorporação da prática à teoria do conhecimento”.

Celebrar com Marx o Dia Mundial da Filosofia é reconhecer que a teoria – Filosofia – quando penetra a consciência das massas se converte em força material.

* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho do cruzamento dos rios Solimões, AM, e Jaguaribe, CE. Em Manaus, AM, no Dia Mundial da Filosofia, 19 de novembro do ano coronavirano de 2020.