Foto: Advogada Maria Benigno (divulgação)
*Maria Benigno
Sempre acreditei que a mulher não só conseguia como devia cuidar de tudo sozinha. Minha mãe é filha única de uma mulher forte, que teve uma vida muito dura pois foi mãe solo e educou a filha trabalhando em casas de família. Minha mãe casou acreditando que mudaria sua realidade mas ficou viúva, com três filhos, aos 24 anos.
Nós, os filhos, fomos criados pela avó semialfabetizada enquanto nossa mãe trabalhava em dois turnos e concluía a faculdade. Depois, eram três turnos de trabalho. Trabalho e educação eram a saída para manter as quatro pessoas que dependiam exclusivamente dela. E ela fez isso com muito sucesso.
Muito cedo aprendi a me virar sozinha. Eu queria o mundo e não tinha quem me levasse, então eu descobri como fazer para chegar aos lugares que, diziam minhas mães, mudariam minha vida. Me espelhando nos exemplos que tive em casa, estudei, trabalhei e conquistei. Só muito tempo depois tive minha própria família e foi quando enxerguei, sem o romantismo da “mulher guerreira” ou “heroína”, que muitas das dificuldades que as mulheres vivem são resultado direto do papel e da responsabilidade atribuídos a nós pela sociedade, inclusive por muitas mulheres.
Não à toa, algumas funções são tradicionalmente do exclusivo mundo masculino. Na área em que atuo, a participação feminina é reduzidíssima, o que faz parecer lógico buscar constante visibilidade para diminuir (mas nunca anular) a chance de não ser lembrada ou escolhida para conduzir ações e campanhas importantes.
Não usar terno e gravata ou ter filhos e uma casa para cuidar são critérios que naturalmente interferem na escolha. Quando estava grávida, não fui chamada para trabalhar na campanha que ocorreu naquele ano. Quando pari, com 30 dias voltei aos tribunais. E quase perdi contratos nesse escasso período de licença “porque o cliente tem condição de contratar outro profissional para o processo não ficar paralisado”.
Ser mulher em um ambiente profissional predominantemente masculino não é desafiador. É desgastante. Somos cobradas a modelar o comportamento masculino. A vestimenta deve ser tanto quanto possível um terninho, como se fosse sinônimo de competência e talento.
Exige-se que a mulher se imponha duplamente, como profissional e como uma pessoa que trabalha cerca de 80% mais que os homens por conta do trato familiar, em especial os cuidados com filhos.
Transportando as lembranças para o início de 2020, tudo parecia correr bem, conforme o planejado. O ano era especialmente importante por ser ano eleitoral. Minha filha de dois anos já estava matriculada na creche e eu finalmente poderia trabalhar sem a preocupação de saber se ela estava bem e segura.
Senti grande culpa e fui criticada por deixa-la tão pequena na escolinha, mas eu sentia que precisava estar nos locais onde se tomam as decisões. Sobre processos, sobre alianças, sobre parcerias, contratos, distratos. O tempo que iria dedicar a essa atividade era pequeno, mas valioso demais.
Passados o susto e o desespero inicial, alguns profissionais privilegiados puderam desempenhar suas atividades trabalhando de casa, o chamado home office que, para muitas mulheres como eu, foi um verdadeiro hell office.
Foto: Advogada Maria Benigno (divulgação)
Aumentaram nossas responsabilidades. A dupla e até tripla jornada de algumas foi normalizada. Não existia mais diferença entre casa e trabalho. Entre intervalo e descanso. Tudo isso somado ao medo e insegurança desses tempos loucos.
Tudo havia parado para quase todos. O trabalho invisível de cuidado das mulheres foi um dos que não parou. Para mim, o trabalho, doméstico e profissional, foi enlouquecedor pois não pude contar com a rede de apoio já estabelecida, de mãe, cunhadas e da funcionária que trabalha em casa. Todos tivemos que nos distanciar, para a saúde e segurança.
Estava vivendo em paranoia, higienizando cada sacola plástica que entrava em casa, tirando roupas e sapatos do lado de fora e todo dia tomando conhecimento da partida de alguém conhecido ou querido, com medo do futuro incerto. E agradecendo por não ter sido contaminada.
Quando as coisas começaram a voltar, tudo em formato novo, a escola apresentou a alternativa de aulas virtuais, o que logo se mostrou inviável para uma criança de dois anos. O sistema de justiça, por sua vez, foi retomado com audiências e sessões de julgamentos por videoconferência.
Chegou um momento em que eu não sabia mais o que era manhã ou tarde pois a rotina com a criança, com a casa e a alimentação era uma roda viva, intercalada com reuniões, audiências, sessões e lives, que proliferam nesse período. E eu já disse por aqui, não dá para ficar longe das oportunidades, ainda mais em um cenário tão incerto.
Nessa maratona virtual, muitas foram as vezes que minha filha me desconcentrou, puxou meu fone de ouvido, deu thcauzinho para os conselheiros da OAB em reuniões virtuais e também foi motivo de graça para meus alunos do curso de Direito Eleitoral da ESA-OAB/AM.
Sei que minha situação nem se compara com a de tantas outras (a maioria, seguramente) pois reconheço meus privilégios mas o objetivo é relatar a sobrecarga que foi dirigida para as mulheres, especialmente as efetivamente sozinhas ou sem um apoio emocional, o que também não foi meu caso. E como disse, um trabalho invisível, não remunerado e pouco reconhecido.
Exemplo dessa ausência de equidade de gêneros e da ignorância quanto às dificuldades que as mulheres viviam naquele momento foi uma reportagem de um jornal de circulação nacional que, na intenção de retratar como a pandemia estava afetando as dinâmicas no sistema de justiça, entrevistou quatro homens e intitulou a matéria “em casa, procuradores, ministros e advogados conciliam processos com filhos e lives”[1].
Essa injusta distribuição de responsabilidades (ou falta dela) na casa, na família, foi escancarada na pandemia e deve ser motivo de reflexão. Esse é uma das razões para querermos mulheres nos espaços de poder, para pensar políticas públicas e legislação que diminuam essa desigualdade com relação à responsabilidade das mulheres, que depois se reflete na desigualdade de salários para pessoas que exercem a mesma função mas são de gêneros diferentes e nas chances dessas mesmas mulheres disputarem com igualdade de condições os cargos de comando.
Foto: Advogada Maria Benigno em sustentação oral no TSE (Tribunal Superior Eleitoral)
Não tem como comparar o tempo que elas dedicam para a formação e especialização com o tempo que os homens, mesmo pais de família, desfrutam.
Para dizer a verdade, vivemos atrasadas. Mesmo empenhadas, dedicando toda nossa energia para dar conta da casa, dos filhos, do trabalho, da imagem e da saúde mental, vivemos correndo atrás do prejuízo. Vivemos uma maratona com obstáculos e quando damos sinais de esgotamento, o mundo é inclemente. O mercado de trabalho é cruel. Somos dispensadas ou alijadas por “falta de foco”, quando na verdade o que vivemos é excesso de pressão, de auto cobrança, de responsabilidades e de medo. E falta de tempo!
E se a vida não foi fácil para quem tem privilégios, faço uma mínima ideia de como deve ter sido para quem não tem sequer esperança.
*Maria Benigno é mãe e mulher advogada, com atuação especializada no eleitoral.