
José Alcimar de Oliveira*
Assim que (Jesus) desembarcou, viu uma grande multidão e ficou tomado de compaixão por eles, pois estavam como ovelhas sem pastor. E COMEÇOU A ENSINAR-LHE MUITAS COISAS (grifo nosso) (Mc 6,34).
01. Assim como Alain Badiou se refere a Paulo como o Lênin de Jesus, e a Jesus como o Marx de Paulo, por minha condição de teólogo semcátedra e de defensor de uma exegese não afinada aos cânones do dogmatismo, concedo-me o direito de afirmar que o evangelista Marcos é o Gramsci de Jesus de Nazaré.
Gramsci se referia a Marx como o filósofo da práxis. Marcos é o teólogo da práxis. Escreveu o evangelho do movimento, da ação. É dele o mais curto dos quatro evangelhos considerados canônicos: apenas 16 capítulos, em 27 páginas, na versão em português da Bíblia de Jerusalém, aí incluído um rico aparato crítico.
Mas como o Nazareno sempre excederá os limites de uma definição, a natureza de sua práxis (palavra e ação) pode, sob medida dialética, também ser pensada como protoanarquista, num devir afinado às figuras de Bakunin e Kropotkin.
02. Na epígrafe acima, reproduzi o último versículo da leitura do texto (Mc 6,30-34) do 16º Domingo Comum, do dia 18 de julho de 2021, lido em todas as igrejas católicas do mundo. Nos versículos seguintes encontramos o relado da primeira multiplicação dos pães. Depois de muitas coisas ensinadas à multidão (entregue a si mesma e desorganizada como “ovelhas sem pastor”), os discípulos se dirigem a Jesus e o orientam a despedi-los, pois já era tarde, estavam num lugar deserto e todos estavam famintos. Jesus reprova a atitude dos discípulos e ordena: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (6, 37). O relato do evangelista Marcos é o que devota mais atenção à humanidade de Jesus de Nazaré: numa hora está tomado de cansaço, noutra dorme, se entristece, sofre, repreende. Nunca tem tempo para si e está sempre cercado pela multidão.
03. Jesus havia lido, de forma antecipada, num poema de Brecht que “a justiça é o pão do povo”. Leitor também dos Profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel, ele se recusa a proceder como os dirigentes religiosos e a elite política de Israel, que há séculos se dedicavam ao trabalho sujo de dispersar e extraviar o seu povo. Ele e os discípulos organizam o povo em grupos e promovem a partilha da palavra e do pão.
A prática de Jesus é outra. Evangelho é saída, devir. Doutrina é prisão, fatalismo. Como sabiamente nos ensina o jovem sacerdote, teólogo e historiador belga de 90 anos, Eduardo Hoornaert, no Brasil desde 1958, o movimento iniciado por Jesus de Nazaré não se deixou capturar pela teleologia do poder, nem religioso, nem político. Ele continuamente confronta e sustenta o conflito com os poderes político e religioso. A leitura de Marcos põe em relevo a fé vivida pelo Nazareno num ambiente sempre hostil, de contestação, de rejeição.
04. Num texto recentemente publicado em seu blog, intitulado com aspas “O Papa Francisco não resolve nada”, Hoornaert nos dá uma aula sobre o movimento anarquista e faz lúcidas e heterodoxas aproximações entre Jesus de Nazaré, o Papa Francisco, o cinismo de Diógenes e os anarquistas Bakunin e Kropotkin.
As atitudes de Jesus de Nazaré são sugestivas de um anarquismo embrionário. O Galileu teria saudado com alegria a experiência da Comuna de Paris, de 1871, entusiasticamente vista por Bakunin como “uma negação ousada e franca do Estado”.
Ao insurgir-se contra o regime da posse e do acúmulo de bens (que será naturalizado pelo sistema do capital), Jesus de Nazaré, segundo o relato do evangelista Marcos, ordena aos apóstolos que em seu trabalho militante “não levassem coisa alguma para o caminho, senão somente um bordão; nem pão, nem mochila, nem dinheiro no cinto; como calçado, unicamente sandálias, e que se não revestissem de duas túnicas” (6,8-9). Como observa o Mouro de Trier: a propriedade privada torna as pessoas “cretinas e unilaterais”.
05. Só aparentemente, conforme Hoornaert, “o Papa Francisco dá a impressão de desconhecer tão impressionante painel histórico. Simplesmente deixa cair uma frase que desmancha tudo: ‘não se deve dar preferência a espaços de poder’ (Exortação Apostólica Amores Laetitia, 2016). Trata-se de incentivar processos, dinamizar a ação, colocar a Igreja em marcha. Abandonar a ideia da centralidade da Igreja na construção da sociedade, militar na construção da justiça e da misericórdia, do encontro e do diálogo sem se ocupar com espaços de poder? Um programa abrangente, uma convocação para além de clausuras culturais e confessionais. Todos são convocados: crentes e descrentes, católicos e ateus, cristãos e islamitas, comunistas e liberais, chineses e ocidentais”. Até quando a Mãe Terra ou, segundo Espinosa, Deus sive Natura, suportará a cultura do ódio, dos nacionalismos e da entropia do atual paradigma ciilizatório?
06. Se considerado como um protoanarquista, Jesus de Nazaré estará na classificação de revolucionário ineficaz conforme definição do historiador marxista Eric Hobsbawm: “A ineficácia das atividades revolucionárias anarquistas poderia ser amplamente documentada em todos os países onde essa ideologia teve um papel importante na vida política”. Penso que o evangelista Marcos discordaria da avaliação de Hobsbawm sobre a ineficácia da ação revolucionária do protoanarquista Jesus de Nazaré.
Jesus de Nazaré não apostou na eficácia de uma missão modulada pelo tempo curto, que cria expectativas de resultados imediatos. Fez o devir da paciência do conceito de Hegel na Alemanha temperada para a paciência da ação na tostada pátria palestinense. Não cedeu à bem-intencionada, mas apressada revolta do zelotismo e dos movimentos revolucionários de seu tempo. Optou por fazer uma revolução a pé, de casa em casa, de aldeia em aldeia. Não tinha pressa, combinava experiência de vida, intuição e leitura de mundo.
Sem leitura nenhuma de Freud ou Lacan, “não necessitava que alguém lhe desse testemunho do homem, pois ele sabia o que havia no homem” (Jo 2,25). O mal e o bem se dissimulavam com surpreendente eficácia, como no Brasil de 2021, em que poder e bom senso seguem em regime de apartação.
07. O seu movimento (e vivamente recomendo o excelente livro de Hoornaert, O movimento de Jesus) se inicia por surpreender o seu círculo familiar na pequena, pobre e muito mal afamada cidadezinha de Nazaré:
“Quando chegou o dia de sábado, começou a ensinar na sinagoga. Muitos o ouviam e, tomados de admiração (afinal nunca cursou a hoje afamada Escola Bíblica de Jerusalém), diziam: donde lhe vem isso? Que sabedoria é essa que lhe foi dada, e como se operam por suas mãos tão grandes milagres? Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas, e de Simão? Não vivem aqui entre nós também suas irmãs? ” (Mc 6, 2-3). Jesus admirava-se da desconfiança dos seus conterrâneos, mas não se intimidava “e, ensinando, percorria as aldeias circunvizinhas” (Mc 6,8).
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 18 dias de julho do ano do morticínio de 2021.
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