José Alcimar de Oliveira*
(Uma revisitação a Durmeval Trigueiro Mendes e ao mais abrangente e
dialético ensaio de Filosofia da Educação, em forma de esboço, sobre os fins e os valores da política educacional brasileira)
1. Ao submeter à crítica enraizada na práxis o contraditório e excludente processo político da educação brasileira, Durmeval Trigueiro Mendes (1927-1987), pensador pouco frequentado, senão hostilizado, pelos
tecnocratas da educação, cumpriu sem meias medidas com as exigências do pensar filosófico na acepção do velho Horkheimer: “esforço consciente para unir todo o nosso conhecimento e penetrar dentro de uma estrutura linguística em que as coisas são chamadas pelos seus nomes corretos”.
Isto fez Durmeval Trigueiro no ensaio intitulado Existe uma filosofia da
educação brasileira? Tentativa e esboço, escrito há 40 anos: “A nossa
observação é que, a despeito da retórica, o Estado não quer, nem nunca
quis, resolver o problema educacional brasileiro”. Afinal, para a didática
magna do Estado capitalista basta garantir ao povo uma educação a base do
ritualismo meia-boca, sem processo e afeita à comemoração de resultados
vazios de finalidade.
O irredento Darcy Ribeiro assegura que o desastre da política
educacional brasileira não é um acidente, é antes a base estrutural de um
projeto. O que Adorno chama de semiformação, modelo dominante de
ensino promovido pelo abrangente e eficiente gerenciamento da cultura no
processo do capitalismo tardio, bem dialoga com o conceito de meia-
educação trabalhado por Durmeval Trigueiro:
“Se se pode promover uma sociedade com cem ou mil pessoas exercendo o papel diretorial, por que educar dez milhões, ou cem milhões, para exercer a democracia? Se o ‘desengrossamento’ do povo, até a limpidez, é tão dispendioso e ‘incerto’, por que não admitirmos a meia-educação? Nesse caso, realizar-se-ia uma educação apenas ritualística-simbólica, atendendo aos anseios da massa e sem que as suas deficiências impedissem o desenvolvimento…”.
Meio sem fim, o ensino a distância se afirma como o coroamento (para não mencionar o impulso coronavirano) da meia-educação promovida por nossa “humanitária” burguesia nacional. Durmeval Trigueiro, precocemente, fez o trânsito da imanência à transcendência (histórica) bem antes da emergência das modalidades remotas de ensino preconizadas por entusiasmados tecnocratas positivistas e prioritariamente destinadas aos países emergentes, sempre presididos por programas emergenciais.
Sob essa estrutura emergencial o Brasil é um dos mais promissores laboratórios para a materialização do ensino a distância. Com a maioria de sua população zelosamente mantida à distância da educação, num percurso histórico que vai de Cabral e Cabral Filho, e agora revitalizado pela pandemia de coronavírus, o Brasil se estruturou para, de braços abertos, receber das mãos invisíveis do mercado de ensino as dádivas envenenadas dessa regressão pedagógica.
O ensino a distância, no Protetorado Norte-Americano do Atlântico Sul, pode contar com um país aberto e uma universidade mais aberta ainda. No devir do capital tudo concorre para manter os privilégios dos habitantes da Casa Grande à distância segura das demandas e dilaceramentos sociais dos senzalados.
Grande parceiro intelectual de Darcy Ribeiro, o educador Anísio Teixeira, que se notabilizou pela defesa da escola pública, insistia na tese bélico-pedagógica – diga-se a favor da educação e contra as guerras – de
que se é impossível fazer uma guerra barata, mais impossível ainda é fazer
uma educação barata.
Em contato com o grande Anísio neste pandêmico2021, quando se completam 50 anos do “acidente” que lhe subtraiu a vida, disse a ele e dele obtive imediata concordância: ensino barato, sim. Educação, não. E mais razão me deu quando tomou conhecimento de que a distância da educação potencializada (ou empoderada, conforme o termo indigesto) pelo ensino remoto cria uma sensação educativa impossível de comensurabilidade com a trabalhosa e cara educação presencial.
Ele de imediato me reprovou o pleonasmo: – abstenha-se de falar em “educação presencial”, a presença é ontologicamente intrínseca ao ato educativo, me corrigiu com afeto.
3. O engodo do ensino a distância, acondicionado em sedutoras
embalagens e rotuladas como educação com as letras douradas da didática
do capital, exerce irresistível atração para um modo de vida premido por
resultados imediatos. Nesses tempos de pressa desinibida, em que o tempo
se converte em medida de dinheiro, falar em paciência do conceito,
autorreflexão ou vida reflexiva, resultaria, para muitos, em caracterizar como algo oneroso e ocioso a proposta de convidar Hegel, Adorno ou
Sócrates para com eles discutir os fins e os valores da prática educativa.
No possível pós-vírus fala-se da emergência do dito novo normal. Se no
normal pré-vírus, sem o qual não seria possível a pandemia coronavirana, o
ensino a distância já fazia escola, com o vírus, que exige distanciamento
físico, essa modalidade chega ao topo da cadeia predatória da didática
exigida pela gramática do capital.
Assim como a Teologia da Prosperidade transformou a Economia numa Ciência Teológica, hoje o ensino a distância revestiu-se com prerrogativas de messianismo pedagógico. Há 30 anos, em seu primeiro discurso como Senador da República, em 20 de março de 1991, Darcy Ribeiro, ao invocar o nome de seu “querido mestre Anísio Teixeira – a consciência mais lúcida” que ele conheceu, afirmava: “(…) juntos (Anísio e eu), dedicamos inúmeras horas a tentar entender como o Brasil consegue a façanha de criar e manter uma escola pública tão desonesta que, repelindo a maioria de seu alunado,
oriundo das camadas mais pobres, se incapacita para generalizar a
alfabetização. Compele deste modo a maioria dos brasileiros à triste condição de marginalizados culturais de nossa civilização letrada”.
O ensino a distância, hoje preconizado pelo entusiasmo de nossos tecnocratas letrados (nenhum formado a distância), é o filho bastardo, mas legítimo, da meia-educação (para aqui voltar ao grande Durmeval Trigueiro) promovida pela “escola pública desonesta”, sempre eficiente em manter o povo à distância da educação. No Brasil, segundo Trigueiro, “(…) as elites forjavam, e forjam, a educação para reproduzir as elites, ignorando a qualificação e a participação do povo”.
6. Mesmo em condições ideais, o ensino a distância já implica uma
agressão ontológica e pedagógica ao reduzir a educação como relação
dialógica entre sujeitos a uma equação funcional entre emissor e receptor.
É um projeto socialmente regressivo, tecido de violência simbólica e
material, propor a modalidade de ensino a distância como medida para
diminuir a distância entre educação e povo, quando mesmo a educação
presencial é marcada pela política da meia-educação ou, segundo Adorno,
semiformação.
O que diminui a distância da educação não é o ensino a distância, mas a materialização da educação como direito universal, e não privilégio de classe. Educação pública, universal, laica, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada na classe que vive do trabalho.
Nós professores e professoras, que nos definimos como intelectuais coletivos das classes subalternas, somos desfiados a ir além de posições reativas e defensivas, e afirmar os princípios históricos da educação presencial e, mesmo na discussão de atividades remotas ou do ensino a distância, nunca permitir que essa modalidade de ensino – porque educação é outra coisa – venha a extrapolar os limites de sua natureza complementar.
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 21 dias de fevereiro do ano (ainda) coronavirano de 2021.