A qual senhor servimos?

Trator derruba igreja no Monte Horebe, nesta quinta-feira, dia 5. Foto: Blog Rosiene Carvalho

Ivânia Vieira *

A reintegração de posse iniciada há três dias na ocupação Monte Horebe, Zona Norte de Manaus, é um acontecimento a ser estudado nas várias áreas do conhecimento.

Possui ingredientes atrativos para produção de filmes, documentários, peças teatrais, musicais e coletânea de livros.A realidade transformada em ficção narrada preferencialmente numa voz única em diferentes plataformas midiáticas.

Como é possível manter a abordagem do fato no patamar do elogio raso à operação de despejo de milhares de moradores?

O desmonte do Monte Horebe produziu esse efeito consensual inquietador porque se constitui em um laboratório da força a ser operacionalizado de agora em diante.Odiscenso quase abafado rascunha a ação coordenada dos poderes estaduais para implodir reações de questionamento e de enfrentamento à retirada das famílias.

Aos jornalistas, estudantes e pesquisadores do jornalismo a reintegração no Monte Horebe produz, a partir das narrativas jornalísticas, conteúdo relevante para reflexão sobre formação profissional, as escolhas feitas, a função da cláusula de consciência, a intrincada mistura do repórter/assessor na produção da notícia, o lugar do jornalismo na cobertura do evento.

“A qual senhor servimos hoje?”

 A ciência política, o direito, a geografia, a matemática, a física, a agroecologia, a sociologia, a análise do discurso, a filosofia, a medicina, a administração, entre outros campos do saber têm igualmente muito material de estudo e subsídios à produção de relatos valiosos sobre os distintos aspectos da formação social contemporânea da cidade de Manaus.

Precisamos conhecer, compreender e aprender para não sermos coletivamente acachapados como tenta fazer o pacto estabelecido entre o poder governamental, da justiça, do legislativo e da mídia.

Se a retirada de moradores do Monte Horebe está vinculada à violência e a existência de grupos narcotraficantes na região, por que o foco da operação não é noutro sentido. Retirar os produtores da violência do lugar. É a violência que exige ser enfrentada no Monte Horebe e em outros bairros de Manaus.

É no mínimo estranho punir famílias vítimas de outras violências retirando-as do lugar onde moram e é o que faz a operação governamental vestida por grosso aparato de maquilagem.

Ainformação governamental assegura o pagamento de R$ 600 a título de aluguel social inicialmente a um grupo de mil famílias.

Quando a primeira parcela do pagamento for efetivada somente a essas famílias, o governo terá desembolsado R$ 600 mil em medida paliativa e sob o risco de não dispor de orçamento para os repasses futuros e no apoio de outras famílias que irão se juntar aos primeiros transferidos.

Por que não utilizar o recurso financeiro existente e a atuação dos diferentes órgãos na construção da infraestrutura do Monte Horebe? Retirar o que faz mal às famílias que ali residem, estabelecer em conjunto com os núcleos de moradores condutas de respeito incluindo o meio ambiente seria uma ação mais saudável, justa e diferenciada, o elemento novo no histórico das intervenções governamentais feitas em áreas ocupadas.

Quem é a pessoa que reivindica a propriedade daquelas terras e recebeu o sim da justiça? Como conseguiu acumular tanta terra? De que direito se fala nesta batalha desigual? Aespeculação imobiliária em Manaus e noAmazonas tem perfil socioeconômico e político com braços longos movimentando interesses político-eleitorais.



*Ivânia Vieira é jornalista, professora da Faculdade de Informação e Comunicação da Ufam, doutora em Comunicação, co-fundadora do Fórum de Mulheres Afroameríndias e Caribenhas e do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas) e articulista do jornal A Crítica.

* O artigo de Ivânia Vieira foi publicado no jornal A Crítica desta quarta-feira, dia 4.