A teologia se fez arte, samba, resistência e alegria no Carnaval de 2020

Foto: Desfile da Escola de Samba Mangueira, no Rio de Janeiro, deste domingo, dia 23. Reprodução do Instagram de Guilherme.Webwe
Foto: Desfile da Escola de Samba Mangueira, no Rio de Janeiro, deste domingo, dia 23. Reprodução do Instagram de Guilherme.Weber

* José Alcimar de Oliveira

Com ou sem a vênia de meu caro Adorno, de sua reticente sensibilidade sociológica à verdade da cultura popular e sem negar a riqueza heurística de seu conceito incontornável de indústria cultural, conceito mais fecundo hoje do que à época de sua formulação, penso que nem o mestre da Teoria Crítica poderia manter-se indiferente à letra do enredo da Mangueira no carnaval de 2020.

Letra irretocável. Uma crítica inteligente e tecida com estética de elevada extração.

O Cristo da Periferia, com sangue índio, negro, dos pobres de todos os povos, em corpo de mulher, a sintetizar o cuidado com a vida, fez a ponte ontodialética entre os morros do Rio de Janeiro e a Nazaré da Palestina.

A Mangueira fez teologia em grau elevado. Fez arte da teologia na cadência maior do samba da resistência ao ódio e ao fundamentalismo, religioso ou não.

Jesus de Nazaré é do Povo e Filho de Nossa Senhora das Dores do Brasil. Uma aula de teologia rés-ao-chão da vida de todos os oprimidos e na alegria da boa luta, porque na alegria do Povo-Multidão de todas as cores não há lugar para a intolerância nem para Messias de arma na mão, conforme reza a letra.

A despeito da forma global (Globo e consortes) e rebaixada de assimilação dos signos populares, da tentativa de conformar a crítica ao que o velho Marx denominava de “tempo da corrupção geral, da venalidade universal” em que tudo se converte em “valor venal”, a verdade ontológica da arte termina por implodir todas as formas e tentativas de falsificação da realidade.

Por meio da força popular do samba a arte, na ágora do sambódromo idealizado pelos irredentos Brizola e Darcy Ribeiro, mostrou na rua o Brasil das entranhas.

A face histórica de Jesus de Nazaré, mais do que em muitas igrejas e templos, revelou-se como Cristo do Povo-Multidão-sem-medo, no sentido mais espinosista das potências afetivas.

* O autor, formado em Teologia e Filosofia, é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, 24 de fevereiro de 2020.

Foto: Desfile da Escola de Samba Mangueira, no Rio de Janeiro, deste domingo, dia 23. Reprodução do Instagram de Guilherme.Weber