Abuso de poder religioso nas eleições

Por Leland Barroso de Souza*

Não se conhece nenhuma cultura ou civilização que não tenha algum tipo de religião. No dizer de Philip Wilkinson (Guia Ilustrado as Religiões, 2011, p. 14) “De fato, o culto de Deus ou de deuses é tão comum que alguns arqueólogos, ao descobrirem uma estrutura ou objeto antigo que não compreendem, em geral lhe atribuem uma finalidade ritual ou religiosa”.

Além de ser quase universal, a religião teve e continua tendo enorme impacto sobre a cultura humana. Não se pode falar de arte sem reconhecer a influência da religião, seja na arquitetura, na pintura, na música, na escultura ou na literatura.

Ao longo da história, várias foram as guerras que tiveram entre suas causas a motivação religiosa. Basta se rememorar as guerras religiosas ocorridas na Europa de 1524 a 1648. Saltando para nossa época, pelo menos sete conflitos podem ser observados tendo como uma de suas motivações a intolerância religiosa: Afeganistão, Nigéria, Iraque, Israel, Sudão, Tailândia e Tibet.

De igual modo, convém lembrar as milhares de pessoas que foram condenadas e algumas mortas por tribunais religiosos. Tudo isso revela o peso e a influências da religião em nossas vidas. Ainda hoje, quando para muitos a ciência oferece um conjunto de respostas mais exatos e promissor para os problemas da vida, as pessoas persistem em sua fé.

Vai daí, não se poder negar a continuação da influência do poder religioso na política. Em nosso país, basta ver a disputa pelo voto dos evangélicos, dado o crescimento desse grupo; bem como a formação de bancadas evangélicas nas casas legislativas.

Pois bem, é diante desse fato incontestável – a influência da religião na vida política – que trato do abuso de poder religioso nas eleições. E o faço, a partir de excelente reportagem feita pela Jornalista Rosiene Carvalho, e publicada no site UOL, intitulada “As Falas Deixam a Desejar: a agenda evangélica de Bolsonaro em Manaus”.

A reportagem trata de cobertura de uma celebração no Auditório Canaã, da Igreja Assembleia de Deus, quando da visita do Presidente da República ao nosso Estado do Amazonas, em outubro de 2021.

Ao fim das atividades Rosiene entrevistou alguns pastores daquela denominação religiosa; chamou-me particular atenção nas entrevistas, esta passagem: Um pastor de 64 anos que pediu para não ser identificado afirmou que se sente constrangido quando políticos estão tão à vontade: “A gente é quase obrigado pelo nosso presidente [liderança da igreja] a votar nesses candidatos. Hoje, você sabe, eles praticamente sabem em quem a gente vota ou não, né? Para a gente não desobedecer, passar por rebelde, a gente vota”.

“A gente é quase obrigado pelo nosso presidente a votar nesses candidatos”. Ora, se um Pastor se sente assim, o que dizer de outros membros mais simples? Identifico aqui uma impossibilidade de pensar livremente, em razão do medo; seja da autoridade superior, seja da danação eterna em razão da desobediência.

O que Espinoza designaria como um obstáculo para pensar e agir livres. A obediência gerada pelo medo de males e pela esperança de bens, ambos igualmente incertos, que levam a imaginar um poder transcendente e caprichoso que possui representantes humanos, conhecedores de sua vontade secreta, e aos quais é preciso submeter-se.

Diria, ainda, o pensador holandês: “Conseguir a obediência sem o constrangimento da força bruta é obter a posse absoluta do outro”. De fato, essa autoridade não quer a obediência obrigada, pois esta não a legitima: aspira pela obediência desejada e consentida.

O abuso do poder religioso é uma forma privilegiada de suscitar o desejo de obediência, graças ao medo e à ignorância da massa e ao aparato de mistério e grandeza com que cerca o poder.

Bem esclarece Marilena Chaui, ser esta uma das razões que levou Espinoza a escrever o Tratado Teológico Político: demonstrar que a superstição é o instrumento mais eficaz para o exercício da violência invisível (o medo, a servidão voluntária, julgar honroso morrer por quem nos domina e explora).

Aproveitando-se desse medo, boa parte dos teólogos cuidam em descobrir como extorquir dos Livros Sagrados suas próprias ficções e arbitrariedades, corroborando-as com a autoridade divina.

Mas como explicar a experiência da obediência (fundamental na política) ou que um homem possa submeter-se a outro?

Responderia Espinoza: dá-se quando alguém está sob o poderio de outro, seja porque lhe domina o corpo, seja porque lhe domina o ânimo, mediante o medo de castigos ou a esperança de benefícios, fazendo com que se submeta a ponto de considerar como desejo seu a satisfação do desejo desse outro a quem serve.

Todavia, quem se livra dos grilhões recupera os meios de defesa e se liberta, volta a ser independente. E se o medo ou a esperança que submetiam o ânimo desaparecem, também desaparece o vínculo de submissão. Alguém pode, ainda, dominar o ânimo de outrem pelo engodo e o manter sob seu poder enquanto o logro tiver força sobre o ânimo alheio, mas, desfeito o logro, o subjugado adquiri autonomia.

Se a política nasce do desejo humano de libertar-se do medo, da solidão e da barbárie, é inconcebível que ainda subsista, em pleno Século XXI, o abuso do poder religioso como mecanismo de submissão de alguns homens para lhes tirar a liberdade do voto.

No entanto, a influência da religião na política volta a crescer pelas mesmas razões do passado remoto, quando a conquista do novo mundo era abençoada como uma cruzada divina contra o paganismo.

Vai longe à época em que a religião se oferecia como sustentáculo ideológico de poderes teocráticos, em que se acreditava que os governantes representavam o poder de Deus e governavam por mandato divino; Espinosa demonstrou que nada há de mais perigoso para a liberdade, a segurança e a paz da república do que a fundamentação teológica da política, ou seja, da superstição.

Não obstante, como ficou demonstrado na reportagem acima referida, o abuso do poder religioso e o discurso da guerra do bem contra o mal, volta a ser um forte argumento nas eleições de nossos dias.

E o pior, há quem acredite nessa argumentação!

* Leland Barroso é Mestre em Ciência Jurídica, Analista Judiciário do TRE/AM (Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas), Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP) e Professor de Direito Eleitoral.