
O procedimento administrativo nº 026/2019 do MP-AM (Ministério Público do Estado do Amazonas) concluiu que há fortes indícios de que uma chacina ocorreu no bairro Crespo, Zona Sul de Manaus, na madrugada no dia 29 para o dia 30 de outubro do ano passado.
Na ocasião, 17 homens e adolescentes foram mortos por policiais da PM-AM (Polícia Militar do Amazonas), durante operação sob o comando da SSP (Secretaria de Estado de Segurança Pública), que desde os primeiros momentos da ação sustentou a versão de que os mortos eram traficantes em confronto com policiais.
Treze dos 17 mortos tinham até 24 anos. Três eram adolescentes: de 17, 16 e um de apenas 14 anos.
“Versão montada”
A conclusão do MP-AM é diferente da versão da SSP. O relatório assinado pelo promotor da 61ª Proceap (Promotoria de Justiça Especializada no Controle Externo da Atividade Policial), João Gaspar, afirma que as 17 mortes foram resultado de uma intervenção policial com “fortes indícios” de homicídio doloso, ou seja, com intenção de matar.
Há ainda, na conclusão do acompanhamento da investigação, relato de disparos fatais a curta distância, pessoas mortas sem terem pego em arma de fogo, retirada de cadáveres da cena da chacina e montagem de narrativa para dar “licitude aos crimes”.
“Da análise dos documentos reunidos durante as investigações, é possível observar a presença de fortes indícios de que de fato houve a prática de 17 crimes de homicídio doloso por intervenção policial (…) Os tiros disparados foram precisos e, dada a região do corpo alvejada, capazes de provocar o óbito imediato das vítimas”, afirma o promotor em dois trechos do relatório.
O promotor afirma que a versão repetida pelos policiais nos depoimentos foi “montada para sustentar a licitude das mortes”.
A mesma versão, desde as primeiras horas após as mortes, foi apresentada pela SSP à imprensa e reforçada em discursos feitos pelo secretário Louismar Bonates e pelo governador do Amazonas Wilson Lima (PSC), enaltecendo o “êxito” da ação policial.
“Acontece, todavia, que a versão carece de credibilidade quando confrontada com os demais elementos de informação reunidos no autos”, afirma o promotor no relatório.
A coincidência no relato dos policiais, até mesmo em detalhes, sobre o que ocorreu naquela madrugada no Crespo, para o promotor, “sugere” uma narrativa montada para sustentar a licitude das mortes.
Precisão de disparos
O relatório chama atenção para o incomum resultado de precisão de tiros em contradição com a versão dos policiais, que foi de reação durante confronto. Para o MP-AM é suspeito a precisão dos disparos numa condição de estresse, perigo, em ambiente dominado pelo supostos traficantes.
A suspeita do promotor a respeito da precisão dos tiros que causaram as mortes no Crespo foi ampliada após moradores e Amazonas Energia confirmaram interrupção no fornecimento no momento da operação.
“Apesar destas variáveis (estresse, perigo e escuridão), os disparos dos policiais foram precisos, certeiros e fatais. Isso sugere que a situação de confronto e legítima defesa não resta confirmada”, afirma outro trecho do relatório.
32 disparos, maioria no tórax
O relatório destaca que as 17 vítimas morreram com um total de 32 disparos e que, destes, a maioria foi tiros no tórax (71,88%). Segundo o inquérito da Polícia Civil, divulgado pelo jornal Folha de São Paulo no início deste ano, dezesseis dos 17 mortos, receberam tiros no tórax.
O inquérito da Polícia Civil, ainda segundo matéria publicada pela Folha de São Paulo, indica que quase metade dos mortos (sete dos 17) não tinha marcas de pólvora nas mãos. As marcas de pólvora nas mãos, via de regra, são as principais provas de confrontos e troca de tiros.
Outro dado do inquérito exposto pela Folha de São Paulo, em janeiro, é que apenas seis policiais da operação tinham marcas de pólvora nas mãos, evidência de quem dispara o tiro.
Uma testemunha dos crimes, ouvidas pela reportagem da Folha em janeiro, afirmou que houve “massacre” e que alguns estavam rendidos e de joelhos quando policiais atiraram.
Para evidenciar a contradição da versão de confronto, o promotor destaca estudo feito pelo departamento de polícia de Nova York afirmando que em condições de estresse diminui a capacidade de exatidão em tiros.
Vítimas
O relatório da Promotoria de Justiça Especializada no Controle Externo da Atividade Policial também afirma que depoimentos indicam que entre as vítimas havia pessoas sem envolvimento com o crime organizado.
A reportagem da Folha em janeiro mostrou que 11 de 21 policiais que participaram da ação têm antecedentes criminais. Os antecedentes criminais das vítimas, que foi destacado logo após as mortes na imprensa local, também foi exporto pelo jornal. Confira as listas neste link.
Datas
O inquérito da Polícia Civil foi concluído em 3 de dezembro do ano passado e, apesar dos indícios, ninguém foi indiciado. A Polícia Civil concluiu que as 17 mortes ocorreram numa situação de legítima defesa dos policiais.
A conclusão faz parte do relatório final sobre o procedimento administrativo do MP-AM, criado para acompanhar a investigação, foi assinada cinco meses depois no dia 5 de maio deste ano. A publicação no Diário Oficial do MP-AM, onde a reportagem teve acesso ao documento, levou mais três meses. Ocorreu no dia 19 de agosto deste ano.
O relatório foi encaminhado para a 16ª Promotoria de Justiça e para a Procuradoria Geral de Justiça.
Discursos
Na ocasião das mortes em outubro do ano passado, a SSP-AM defendeu que os 17 mortos, entre os quais três adolescentes, eram traficantes, foram baleados durante confronto com policiais militares. Ainda segundo a SSP-AM, os policiais foram recebidos a tiros no local, após serem chamados pela população.
Logo após as 17 mortes, em coletiva à imprensa, o secretário da SSP-AM, Louismar Bonates, declarou que a polícia não mata e sim “intervém tecnicamente” e que quem “vai chorar serão as famílias de quem atira”.
O governador Wilson Lima (PSC) disse que não irá sossegar enquanto a população não se sentir segura logo após 17 mortes.
O comandante da PM-AM, coronel Ayrton Norte, também endossou a ação no Crespo e declarou, poucas horas depois das mortes, que quem agisse de “maneira ousada” contra a polícia ia “receber resposta à altura.
“Nossa obrigação é preservar vidas e aplicar a lei, porém, aqueles que agirem de maneira ousada contra a polícia vão receber a resposta à altura. Vale ressaltar que a vida dos nossos policiais foi preservada e que, graças ao excelente preparo técnico da tropa, nenhum policial ficou ferido”, afirmou o comandante.
Outro lado
A reportagem procurou a assessoria de comunicação da SSP-AM para saber se a secretaria ou a PM-AM se manifestariam sobre o relatório. A Secom (Secretaria de Comunicação) também foi procurada para saber se o governador Wilson Lima se manifestaria sobre o resultado do relatório. Nenhuma resposta foi enviada até a publicação desta matéria.
A PM-AM por meio de sua assessoria de comunicação informou que se houver crimes na ação os autores serão responsabilizados. Disse ainda não ter recebido qualquer notificação por parte do MP-AM e ressaltou que o inquérito da Polícia Civil do Amazonas concluiu que os policiais agiram em legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal na ocasião. Leia a nota completa da PM-AM, no final da matéria.
Lista com o nome dos homens e adolescentes mortos por intervenção policial suspeita de chacina:
1. Bruno Cardoso Lopes, 23 anos.
2. Markleuson Batista da Silva, 18 anos.
3. Max William Sampaio da Silva Cavalcante, 29 anos.
4. Michel dos Santos Cardoso, 27 anos.
5. Alexsandro Custódio de Carvalho, 16 anos.
6. Erick Osmarino Silva Santos, 17 anos.
7. Lucas da Costa Pereira, 21 anos.
8. Eder Júlio Canto Costa Junior, 20 anos.
9. Aldair Campos Nascimento, 21 anos.
10. Vinicius Eduardo Souza da Silva, 21 anos.
11. Natanael Costa Melo, 20 anos.
12. Samuel Pinheiro Campos, 23 anos.
13. Francisco Eduardo Farias da Silva, 24 anos.
14. Eligelson Maia de Souza, 28 anos.
15. Uelinton do Nascimento da Silva Junior, 14 anos.
16. Rodrigo Rebelo Fialho, 28 anos.
17. Leácio Lucas de Oliveira, 19 anos.
Nota da PM-AM
“A Polícia Militar do Amazonas informa que aguarda a conclusão dos trabalhos do Ministério Público e que não foi notificada até o presente momento, não recebendo qualquer denúncia.
A PMAM informa, também, que todo o trabalho realizado pela Polícia Militar tem controle externo pelo Ministério Público e pela Corregedoria do Sistema de Segurança Pública. Se houver erro em qualquer atuação policial, haverá responsabilização dos envolvidos.
Vale ressaltar que, conforme informado no início deste ano à reportagem da Folha, a investigação da Polícia Civil não encontrou indícios mínimos de dolo homicida na conduta dos policiais. Os mesmos, inclusive, prestaram o socorro médico às vítimas e agiram resguardados pelas excludentes de ilicitude da legítima defesa e do estrito cumprimento do dever legal.
O Departamento de Polícia Técnico-Científica (DPTC), que coordena os trabalhos do Instituto Médico Legal (IML), explica que somente o médico pode declarar o óbito.
A dinâmica da ocorrência, que se estendeu por vários becos, repletos de moradores, prejudicou o isolamento do local do crime. Outros elementos probatórios foram utilizados pelo inquérito, como a perícia nas armas, a necropsia nos corpos, e os testemunhos, entre outros.
Durante o atendimento da ocorrência, o serviço emergencial 190 recebeu cerca de 27 ligações com pedidos de socorro dos moradores da área, que também forneciam informações sobre o paradeiro dos suspeitos que trocavam tiros“

