Alencar é o 4° a confirmar participação dele e do governador na articulação da compra de respiradores

Foto: Edmar Barros (Empresário e ex-militar Gutemberg Alencar (de blusa marrom), preso na 2a fase da Sangria. Na frente dele, o médico Luiz Avelino, marido da ex-secretária de comunicação Daniella Assayag)

O empresário e ex-militar Gutemberg Alencar é o quarto investigado da Operação Sangria que confirma a realização da reunião na Susam (Secretaria de Estado de Saúde) entre ele e a cúpula da pasta e sua interferência na contratação de empresas para fornecer respiradores superfaturados durante o pico da pandemia ao estado. As informações constam na investigação da PF (Polícia Federal).

Os quatro depoimentos que confirmam a reunião representam mais uma peça no conjunto de provas e indícios que a investigação sustenta ter na apuração. Para a PGR (Procuradoria Geral da República) e PF (Polícia Federal), uma organização criminosa se instalou no Estado do Amazonas para se aproveitar do momento de calamidade e desviar recursos.

Além do conteúdo do depoimento de Alencar confirmar a reunião, o delegado da PF Igor de Souza Barros, que preside o inquérito da Sangria, constrói este raciocínio no pedido feito à justiça para que a prisão dos presos na segunda fase da operação fosse prorrogada. O blog teve acesso ao documento, mantido em sigilo pela justiça federal.

“Da análise detida destes dois depoimentos, percebe-se que RODRIGO TOBIAS e GUTEMBERG ALENCAR confirmam que houve uma reunião (articulada pelo Governador) para tratar sobre assunto da aquisição dos respiradores pulmonares (fato este já detalhado pela ALCINEIDE FIGUEIREDO, presa na primeira fase da Operação)”, afirma trecho do pedido apresentado pelo delegado à justiça.

Antes de Alencar confirmar a presença dele na reunião e a participação na compra, a investigação sustentava que havia indícios que o empresário era o “homem de confiança indicado pelo governador para intermediar a aquisição” dos respiradores.

O governador nega esta acusação e disse que não lida com empresários.

Reunião: centro da engrenagem e dos depoimentos contra Wilson

A citada reunião, realizada no início de abril, é tratada pela PF e PGR, segundo os documentos que vazaram até este momento, como centro da suspeita de fraude e superfaturamento de 28 respiradores comprados na vineria.

Três depoimentos confirmam que a reunião ocorreu e que uma pessoa externa à pasta, Alencar, reuniu com a direção da Susam para intermediar a compra de respiradores. Sobre a interferência de Alencar e o conhecimento do governador são quatro o número de depoimentos que apontam nesta direção, incluindo o do vice-governador.

A mesma reunião também é o centro dos depoimentos que ligam o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), ao esquema porque parte deles afirma que a reunião foi “articulada” pelo chefe do Executivo. Nada mais, até este momento, liga o governador ao esquema e a investigação só tramita no STJ em função do foro privilegiado de Lima.

Primeiro depoimento: gerente de compras da Susam

Antes de Alencar, conforme o próprio delegado da Sangria relata, a reunião foi revelada no depoimento da ex-gerente de compras, Alcineide Figueiredo Pinheiro.

Foi ela que, após ser presa na primeira fase da Sangria, entregou à PF detalhes da compra e apontou Alencar como alguém apontado pelo governador no esquema e com o conhecimento da Casa Civil. Na ocasião, a Casa Civil era chefiada pelo vice-governador Carlos Almeida Filho.

“Que como a Susam (Secretaria de Saúde do Amazonas) não tinha meios de comprar à vista, Alencar compraria os respiradores ou ventiladores para o estado; que posteriormente o estado deveria pagá-lo; que não foi esclarecida a forma de pagamento por parte do estado; que Alencar estaria oferecendo sua ajuda a pedido do governador”, disse Alcineide no depoimento.

Segundo depoimento: ex-secretário da Susam

Depois de preso, o ex-secretário da Susam, Rodrigo Tobias, confirmou que a reunião com a presença de Alencar ocorreu e ainda deixou no celular apreendido pela PF uma gravação de áudio da época em que ele determina a irregularidade e diz que será feita por determinação do governador.

“No dia 3 de abril, à noite, o declarante se encontrou com o governador Wilson Lima no aeroporto para recebimento de uma carga de respiradores (vindos do Rio de Janeiro pelo avião da FAB), e nessa ocasião, o governador insistiu que o declarante se encontrasse com a pessoa de nome Alencar; Que então no dia 4, sábado, o declarante encontrou, pela primeira (sic), com o Alencar em seu gabinete”, afirma o documento do depoimento.

Na gravação, Tobias afirma a um subsecretário da Susam: “Eu estou recebendo muitas demandas, e uma delas que eu quero canalizar é do governador, parece que ele tem um canal de um empresário aqui do Amazonas, o cara é grande. O cara tem bala na agulha e o cara se prontificou a fazer as compras pelo governo do estado. E a gente segue com o rito normal dos nossos processos e procedimentos para comprar dele”, diz Rodrigo Tobias, ex-secretário de Saúde do Amazonas.

Terceiro depoimento: vice-governador do AM

O vice-governador do Amazonas Carlos Almeida Filho (PTB), sem citar a reunião, confirmou o conhecimento do governador Wilson Lima e dele sobre a atuação do ex-militar e empresário Gutemberg Alencar na Susam. Carlos, no entanto, se esquiva de responsabilidade ao declarar, também em depoimento à PF, que foi contrário à participação de Alencar e, em maio, pediu para sair da Casa Civil.

“Que em março deste ano o governador o colocou em contato com Gutemberg; que manifestou ao governador suas resistências e desagrado em tratar com ele (…) Quando do início da pandemia, Wilson Lima o contatou afirmando que Alencar queria ajudar o governo durante a pandemia (…) Que sempre quis manter distância de Alencar”, informa trechos do depoimento do vice-governador à PF.

Carlos Almeida, que é eventual substituto de Wilson no exercício do governo e está rompido com o governador, também é investigado na Sangria. A PGR e PF aponta uma série de indícios da ascendência e influência dele na Susam e que era frequente que secretários e subsecretários, que executaram a irregularidade, se reportavam a ele.

Quarto depoimento: o próprio operador

Embora com versão sobre o conteúdo e a motivação diferentes dos demais depoimentos, Alencar também confirma sua participação na reunião:

“No mesmo sentido, Gutemberg Alencar esclareceu: “(…) durante uma conversa (com o Governador) sugeriu que fossem importados respiradores e outros insumos vez que havia carência de produção nacional; (…) passados alguns dias recebeu uma ligação do Dr. TOBIAS falando dessa ideia (…) ao ir até o Gabinete do Dr. TOBIAS, foi apresentado a Senhora ALCINEIDE e esta colocou a sua dificuldade que vivia de encontrar respiradores para aquisição, tendo em vista a alta demanda (…) QUE nessa oportunidade se dispôs a ajudar a D. ALCINEIDE (…) passou a mandar para a mesma imagens de equipamentos com referência e os contatos das empresas fornecedoras (…)”, afirma trecho do pedido de prorrogação das prisões.

Empresário do setor de construção vira consultor da compra de respiradores na pandemia “por questão humanitária”

No mesmo depoimento em que confirma sua presença na reunião, Alencar revela sua atual atividade empresarial: concreto usinado e material de construção. Sem nenhuma aparente qualificação para o setor de Saúde, Alencar diz que numa conversa deu ideias e foi procurado pela Susam para apontar soluções para o principal problema no enfrentamento da pandemia: compra de respiradores para salvar vidas.

No depoimento, neste trecho, não há citação do nome do governador. Esta interpretação aparece no pedido do delegado federal,

Em depoimento à PF, Alencar apresenta motivo nobre à sua atuação na Susam e diz que foi à secretaria, a pedido de Tobias, “para ajudar a cidade e o Amazonas”.

“QUE atendeu o pedido e foi até o Senhor RODRIGO TOBIAS com único interesse de ajudar a cidade e o Amazonas; QUE foi por uma obrigação humanitária tendo em vista o estado de calamidade pública”, disse.

No entanto, confirma sua atuação na definição das compras, negando irregularidade.

“QUE posteriormente procurou o telefone da D. ALCINEIDE e passou a mandar para a mesma imagens de equipamentos com referência e os contatos das empresas fornecedoras para que a mesma visse se atenderia as condições e especificações de interesse do Governo; QUE durante todas as conversas e trocas de mensagens nunca houve por parte de ALCINEIDE, ou qualquer outro membro do poder público, ou por parte do declarante, qualquer intenção/sugestão da prática de irregularidades ou ganhos”.

Já segundo Alcineide, Alencar compraria para o governo e este pagaria ao empresário posteriormente. A PF ao relatar este ponto, antes da prisão do empresário, diz que Alencar era um dos empresários responsável pelo esquema e acrescenta que ele indicou a FJAP (vineria), mas quem financiou a empresa para comprar da Sonoar foi o Big Amigão.

Um outro dado que se extrai da decisão do ministro Falcão é que a PF não pediu a prisão de Alencar mas que, como a PGR requereu, o ministro Falcão atendeu. Quando há o pedido de prorrogação, a PF inclui Alencar.

Peças da Sangria

Diante do que já foi exposto nos documentos vazados, a PF e a PGR demonstram convencimento e exposição de provas a respeito do superfaturamento e da suspeita de fraude na compra dos 28 respiradores na Vineria Adega e da Sonoar.

Aliás, as provas sobre o superfaturamento e a suspeita de fraude foram apresentadas já no âmbito da CPI da Saúde.

Portanto, a investigação da PF precisava que Alencar declarasse que houve a irregularidade? Não necessariamente.

Mas, no sentido de confirmar a reunião com a participação dele, que é apontado como elo do governador com o esquema, Alencar, em depoimento, dá um importante elemento para a montagem do quebra-cabeça.

Pelo que foi exposto nos posicionamentos da PF e PGR, nos documentos vazados, a investigação demonstra até aqui segurança nos seguintes pontos: que houve superfaturamento; direcionamento das empresas beneficiadas; uma reunião para operacionalizar a fraude; que o homem apontado como “de confiança” e elo do governador com o esquema participou da reunião; que os servidores da Susam alegam e demonstram nas conversas mantidas nos celulares que receberam “ordem de cima”.

Todas as cinco pessoas presas temporariamente ficaram dez dias na penitenciária, foram liberadas e negam participação no esquema. A reportagem não conseguiu contato com o advogado de defesa de Alencar.

Veja o pedido de prorrogação das prisões temporárias da PF, cujo trechos foram usados na matéria: