“Aprender a nos amar não é egoísmo e nem deve ser culpa: é necessidade para cumprir múltiplos papéis”

Elaine Garcia*

Em 2 anos de pandemia e com muitas histórias e vidas impactadas de diferentes formas, foi natural que o filme da minha vida passasse diversas vezes nas minhas lembranças. Quando a vida exigiu um olhar para dentro e um pouco mais de calma, sem a corrida frenética, percebi com mais gratidão o quão abençoada minha história de vida é e de que forma posso devolver isso. Permita-me contextualizar, às vezes quem não conhece os nossos “Porquês” jamais entenderá os nossos “Comos”.

Em 1992, moradora do bairro Zumbi, na zona leste de Manaus, eu jamais conseguiria imaginar que 30 anos depois eu teria uma vida tão diferente. Meus olhos não me permitiam alcançar muito longe, não tinha rede social, comunicação precária e acesso a pouquíssimas informações.

Mas, como leitora voraz, foi dentro da biblioteca da escola municipal no bairro Colônia Antônio Aleixo, que eu estudava, que conheci o livro Polliana Menina que me ensinou o “jogo do contente” e a partir daí o olhar de gratidão a todas as dificuldades da vida. Acabo de reconhecer que o propósito do empoderamento feminino nasceu em mim por meio de uma inocente personagem fragilizada de um livro infantil. Múltiplo como a personalidade de todas as mulheres.

Trabalhar nunca foi uma opção, a vida não me deu outra alternativa (felizmente). Ter uma carreira executiva começou a se desenhar como objetivo, mas sem muito embasamento consciente. Lá atrás, eu já sabia que teria sido mais fácil se eu não fosse mulher. Foram muitos obstáculos, desde morar sozinha, sem família em Manaus dos 18 aos 22 anos (idade do casamento), começar a vida profissional, sem parente, sem herança, sem marido rico ou influente e sem networking.

No ano que casei (2003) descobri o lúpus, uma doença autoimune com grandes probabilidades de uma vida de sequelas e impedimentos, mas graças às orientações iniciais, levo uma vida completamente normal e devo dizer que sou muito grata a esse diagnóstico dado aos 23 anos. Me permitiu olhar para a vida sem deixar nada para depois. Algumas pessoas entenderam isso na pandemia, eu aprendi com 18 anos de doses de hidroxicloquina diárias.  

Já sabia que a vida acontece agora: cuidar do corpo, da saúde, do emocional, dos filhos, dos relacionamentos, do lado espiritual, da vida financeira. É tudo ao mesmo-tempo-agora.

Isso nos sufoca enquanto mulheres, e não estou aqui romantizando esses múltiplos papéis, que nos desgastam sim, mas fazer isso tudo ser leve é um caminho possível. No autoconhecimento, tentar perceber o que nos desgasta e o que nos abastece e dar espaço para essas coisas todos os dias.

Percebi em mim que se torna pesado quando só faço coisas que me consomem e roubam minha energia. Nossos esgotamentos não precisam chegar a este ponto.

Por muito tempo não achei que precisasse ter essa bandeira da mulher no mundo corporativo como fala. Até estar em ambientes com grande sub-representatividade feminina. E aí, como se posicionar enquanto liderança se passamos muito tempo tentando ser aceitas por homens e assumindo personalidades e estereótipos corporativos unicamente masculinos? Fugindo daquilo que nos é inerente: a sensibilidade, a delicadeza, o acolhimento, as vivências, a beleza. Precisamos mesmo liderar como os homens?

São muitos vieses inconscientes que moldaram a mulher no mundo corporativo e nunca vivemos um momento tão necessário para usarmos essas habilidades tão genuinamente femininas.

Na pandemia, mais do que nunca, ficou evidente, que estamos todas na mesma tempestade sim, mas não estamos todas no mesmo barco. Algumas de nós estamos em iates de luxo, em cruzeiros, outras em pequenas canoas, muitas sobrevivem em seus coletes, ou se agarrando no que podem para não morrer.

No ambiente corporativo, pude acompanhar histórias de mulheres que perderam emprego ou que não tiveram essa opção de ordem familiar, porque a mulher foi muito mais exigida. Ser provedor da casa não é um perfil aceito facilmente para uma mulher.

As mulheres foram maioria nos índices de desemprego – em número nunca antes vistos. Uma das razões apontadas é justamente a sobrecarga feminina em papéis domésticos. Mais da metade das brasileiras passou a cuidar de alguém na pandemia. Às mulheres coube cuidar de familiares e filhos.

Uma amiga sempre diz que não estamos em home office, foi o office que invadiu o nosso home, então, ficou evidente como aquela máxima “Que as mulheres precisam trabalhar como se não tivesse filhos e ser mãe como se não trabalhassem fora.” Essa conta não fecha, nunca vai fechar, e não fechou.

E como mulheres com tantos papéis que queremos (ou não queremos viver) porque nos privamos tanto?

Por que tanto medo do julgamento, vergonha, síndrome de impostora, medo de se feminilizar para ter uma imagem aceita pelos homens, medo de construir networking, medo de falar das nossas conquistas, medo de falhar, ausência de sentimento de merecimento, medo de sair da zona de conforto mesmo querendo resultados diferentes…

Ouvimos muito falar em força de vontade: mas para provocar uma mudança não precisamos só de força de vontade, nossas vontades são preguiçosas por natureza. Nossa vontade vai oscilar. É preciso ter força de visão, para ter clareza do que é importante, e força de compromisso, que a isso chamamos de disciplina, aquele passo curto, firme, dado todos os dias, até chegarmos lá.

Todas essas histórias me trouxeram para esse tema do universo feminino, meio que sem querer, nos vários grupos de mulheres que participo.

Porque se falarmos mais sobre os desafios da mulher no mundo corporativo, umas com as outras, podemos intensificar os nossos pontos de vista, observar que ainda temos comportamentos machistas, sim, e se estivermos em posição de liderança, apoiar e olhar com carinho para as dificuldades das outras mulheres que nos cercam. Se nós mulheres não trouxermos esse ponto pra mesa de reunião, quem mais o fará?

A socialização masculina é histórica, os ritos entre eles são aceitos e incentivados. Para as mulheres, o outro lado impera. Lorrane Clarinda fez uma série de stories sobre o mito da rivalidade feminina e a quem ele se beneficia.

Passamos a vida ouvindo que mulheres são falsas e a amizade de verdade só entre homens. Somos ensinadas a ficar de olho em outras mulheres por elas “ameaçarem” nossos relacionamentos. Crescemos competindo com outras mulheres, nos comparando a sermos superiores e assim acabamos ficando sozinhas. A solidão gera dependência e ela nos coloca em lugares em lugares difíceis de sair, como relacionamentos abusivos e etc. Locais que não terão uma figura feminina para dar apoio e avisos. E quem você acha que se beneficia desse sistema de rivalidade e solidão feminina? O patriarcado. Afinal, a união feminina é transformadora. Isso porque quando uma mulher é cercada de reconhecimento e aceitação dos seus pares ela é impulsionada como nunca antes e aí entende que pode contestar, discordar e tem forças para no coletivo se livrar de suas amarras”.

Foi essa provocação que virou minha chave para deixar de ser sem querer com esse tema e passar a ser de propósito.

É necessário reconhecer que sem rede de apoio não conseguiremos ir muito longe. Tenho a sorte de ter um companheiro de jornada que me apoia incondicionalmente, mãe presente que me ajuda no cuidado com as crianças… mas nem sempre nossa rede de apoio sabe o quanto isso é importante, nem sempre está preparada para tal e muita das vezes ela não estará disposta para fazê-lo. É rede de apoio mas também é rede cobrança.

Lembremo-nos sempre, que fomos criadas com um patriarcado muito arraigado, por isso não é difícil encontrar o machismo presente nas opiniões de nossas mães e outras mulheres de nossa família, mas é nosso papel, com o conhecimento que temos hoje, demonstrar com amor e respeito o quanto já avançamos em conquistas, e que não é mais o momento de retroceder.

Ensinar que estamos percorrendo outro caminho, diferente dos delas, mas que assim poderemos honrar a memória e as conquistas dessas mulheres fortes que vieram antes de nós.

Para isso, eu uso sempre a teoria da máscara de oxigênio do avião “Em caso de despressurização da cabine, máscaras de oxigênio cairão automaticamente. Puxe uma das máscaras, coloque-a sobre o nariz e a boca, ajustando o elástico em volta da cabeça e respire normalmente, depois auxilie a criança ao seu lado”.

Se eu não estou bem e não estiver respirando, não conseguirei ajudar quem convive comigo. É a forma que nos amamos que ensina os demais a como queremos ser amadas. Mas para isso é preciso passar pela crença de que se pensarmos primeiramente na gente seremos tratados como pessoas egoístas e esse é o maior desafio. A culpa que toda mulher carrega independente do que ela faça.

O problema é que falar de feminismo se tornou pejorativo. Nada tem a ver com axilas não depiladas ou peitos de fora. O papel delas é importante também, precisaram chocar para serem ouvidas em nossas causas, admiro a coragem.

Mas Djamila Ribeiro nos lembrou “quando entenderem que nossa luta é por justiça social, equiparação e equidade, não tem motivo para não ser feminista”.

E, mais uma vez, é preciso ter autoconhecimento e respeito. Nem sempre só ser mulher nos habilita para falar do tema com propriedade, se a sua realidade não te obriga a viver com tantas possíveis adversidades que as múltiplas realidades se apresentam. O melhor a ser feito sempre é: olhar com carinho para os “porquês” da outra mulher. Isso já fará uma grande diferença.

*Elaine Garcia, mãe do Yuri e da Letícia, executiva de negócios nas áreas de Pesquisa, Desenvolvimento & Inovação. Administradora pela UFAM, Especialista em Adm pela FGV, Gestão de Projetos pela UAM e Finanças pelo IPOG, Certificação Internacional em Liderança Feminina (Woman’s Leadership Program) pela Nova SBE (Nova School of Business & Economics) em parceria com a Startse.

2 comentários
  1. é sobre aprendizado, aprendermos mais sobre o feminismo e não nos colocarmos no lugar de rivais de outras mulheres. Parabéns a vocês que trazem este conteúdo à tona.

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