
*José Alcimar de Oliveira
01. A mais relevante característica dos grandes pensadores da história reside no desafio de agir e pensar com os pés em seu tempo e para além de seu tempo histórico. Em razão dessa potência, nenhum deles, sem exceção, coube em sua época. Já eram clássicos sem o saber. São agentes transepocais. Para nomear alguns, dentre os grandes, poderíamos citar Heráclito, Sócrates, Jesus, Justino, Agostinho, Aquino, Descartes, Espinosa, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, para ficar nos limites temporais do século XIX. Essa a razão de não incluir Freud. E admito incompleta e parcial a lista.
02. O mais longevo filósofo em atividade, lúcido e mundialmente reconhecido, Edgar Morin, 98, num breve livro de 2011, intitulado Meus filósofos, inclui em sua lista – ele, confessadamente ateu – a figura de Jesus de Nazaré. Não o teria feito se nele não reconhecesse a natureza universalista de seu pensamento. Afirma Morin: “Sempre estive ao lado de Jesus e tinha má impressão dos Fariseus”, presos a uma visão localista, tinham se “transformado nos únicos representantes da religião judaica”. Eles foram os maiores inimigos de Jesus de Nazaré. Se a palavra final dos que julgaram Jesus fosse a das autoridades da dominação romana, sua condenação teria sido evitada. Quando revestido de religião, tal era o ódio dos Fariseus, o poder da identificação cega das massas com a vontade dita coletiva do fundamentalista religioso ultrapassa todos os limites da arbitrariedade insana.
03. Outra característica não menos importante, que sempre acompanhou o devir dos grandes pensadores, vem da natureza herética e heterodoxa de sua trajetória intelectual: teológica, filosófica, ética e política diante do poder dominante. A propósito dessa característica, Celso Furtado, um dos mais reconhecidos intelectuais do pensamento econômico brasileiro, sustenta: “Nenhuma sociedade consegue livrar-se completamente da ação dos heréticos, e nada tem de mais importante na história da humanidade do que a heresia (grifo meu). A verdade é que sempre aparecem pessoas dispostas a lutar por ideias novas, pondo em risco posições de prestígio e interesses econômicos”. Penso que há sempre um veio herético em todo pensamento verdadeiramente filosófico.
04. O trio judaico composto por Jesus, Espinosa e Marx nos dá a medida dessa ousadia herética. Cada um, a seu tempo e na fidelidade irredenta de suas posições, pagou o preço do anátema. Certa vez indagado sobre o que seria um intelectual, Marcuse respondeu com uma definição de Ernst Bloch: é quem não faz acordo com os dominantes. O que seria da filosofia – à exceção de boa parte dos filósofos acadêmicos e dos que a malbaratam pela rentável via da autoajuda – se o seu lugar fosse definido pelo valor de mercado? O que seria da mensagem libertária de Jesus de Nazaré se tivesse optado pelo conforto e pela segurança do farisaísmo religioso. À religião positivada – não me refiro aqui ao sentimento religioso tão bem captado pelas lentes da crítica antropológico-filosófica de Feuerbach – Jesus de Nazaré contrapôs o caminho do Evangelho (Boa Notícia). O contrário é o Disangelho.
05. Uma outra característica dos grandes pensadores – e sem gradação hierárquica – é o universalismo. Não confundir com globalismo ou homogeneísmo. Pelos caminhos da esquerda denominamos de internacionalismo. O velho Kant, numa de suas instigantes conclusões que atravessam os tempos, assegura que o pior desserviço que o pensamento pode prestar à moral é querer fundamentá-la nos costumes. O costume é sempre o reino da diversidade empírica e sempre que confrontado a outro costume imagina-se dotado de necessidade lógica e de validade universal. Há muita diferença entre o universal a que se chega pelo confronto crítico e civilizado entre as diferenças e o universal fundado numa só diferença. Se o universalismo (internacionalismo) da mensagem de Jesus de Nazaré não tivesse rompido os muros do fundamentalismo da religião dos Fariseus há muito seria parte do arquivo morto da história. Se essa mensagem, a despeito das formas positivas de aprisionamento e de domesticação, chegou até nós é porque nela há o que Agnes Heller denomina de “invencibilidade da substância humana”.
06. Vem do pensador marroquino Alain Badiou, nascido em 1937, que se proclama “hereditariamente ateu”, e um dos mais criativos intelectuais marxistas da atualidade, a leitura mais elogiosa e crítica que já fiz do apóstolo Paulo. Em seu livro São Paulo: a fundação do universalismo, publicado no Brasil pela Editora Boitempo, Badiou parece ajustar contas com Nietzsche em relação à hermenêutica dos escritos paulinos. Se de um lado Nietzsche é reticente, diria mesmo respeitoso em relação a Jesus, a ponto de concluir que ele foi apenas uma vítima, e com ele morreu na cruz o único cristão que a humanidade conheceu; de outro, em relação a São Paulo, ele não alivia a contundência de sua “filosofia do martelo”. Para ele São Paulo era um tipo de Platão estragado, ideólogo ressentido do platonismo dos pobres, ao assim referir-se ao cristianismo.
07. A contrapelo da hermenêutica nietzscheana, Badiou vê em São Paulo o “pensador-poeta do acontecimento e, ao mesmo tempo, aquele que pratica e enuncia atos constantes característicos do que se pode denominar a figura militante. Ele faz surgir a conexão, integralmente humana e cujo destino me fascina, entre a ideia geral de uma ruptura, de uma virada, e a de um pensamento prático, que é a materialidade subjetiva dessa ruptura”. Pensando com a esquerda classista, longe de mim propor às diversas tendências da vital tradição vermelha debruçar-se sobre os escritos paulinos. No máximo, faria o convite a visitar esse texto de Badiou, que reconhece em São Paulo o poder militante e estratégico de um leninista avant la lettre, iniciando desde as terras palestinas o ideário de que sem teoria revolucionária não há prática revolucionária. Por fim, para concluir com Badiou: “Quando está na ordem do dia dar um passo à frente, pode-se, entre outras coisas, dar um maior para trás. Daí essa reativação de Paulo. Não sou o primeiro a arriscar a comparação que faz dele um Lênin, do qual o Cristo teria sido o Marx equívoco”. Ao contrário do que pensa o preclaro companheiro Nietzsche, trata-se de uma injustiça desconhecer em São Paulo a potência militante e embrionária de um universalismo sem o qual a esquerda continuará enredada em suas tendências paroquialistas e quase sempre, por falta de autocrítica, aprisionada em ressentimentos. Enquanto isso, a direita avança e alarga espaços sob as rédeas da ultradireita.
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo heterodoxo e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 03 de maio do ano coronaviano de 2020. P.S. Dia do Sertanejo, dia do Pau-brasil, dia do Sol e Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.
Foto: fernandoeichenberg.wordpress.com