
O ex-procurador geral de Justiça do MP-AM (Ministério Público do Estado do Amazonas) e advogado Francisco Cruz declarou que a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que derrubou a prisão em 2ª instância nesta quinta-feira, dia 7, não traz nenhuma inovação jurídica e apenas decide que é constitucional a garantia de que a prisão não é obrigatória antes de que acabem os recursos.
Em entrevista à Coluna de Política da Rádio BandNews Difusora na manhã desta sexta-feira, dia 8, Cruz afirmou que o STF compreendeu que a prisão em 2ª instância adianta a pena e a culpa e que, pela Constituição, as pessoas só são consideradas culpadas quando há trânsito em julgado do processo.
Para o jurista, as pessoas confundem a cadeia como justiça e com o fim da prática de crimes e defende que as questões jurídicas para evitar impunidade e a delinquência precisam ser discutidas com serenidade.
“A cadeia é uma das ferramentas à disposição da sociedade, mas ela não tem poder mágico para acabar com toda a delinquência. Por exemplo, o Mensalão colocou várias pessoas na cadeia e não foi suficiente para acabar com a delinquência que continua nos bastidores da oficialidade. Não é correto pensar que se colocar todo mundo na cadeia, nunca mais haverá crime. A cadeia é a última alternativa e tem que se colocar os que causam o mal à sociedade. Os que não sabem viver em sociedade”.
Confira a entrevista:
Rosiene Carvalho: O que significou, do ponto de vista da leitura que o STF faz da Constituição Federal, a decisão que derrubou a prisão em 2ª instância?
Francisco Cruz: A decisão do STF de ontem por 6 a 5 representou que eles apenas discutiram e decidiram que o artigo 283 do CPP (Código de Processo Penal) é constitucional. Depois de 2011, houve uma alteração no CPP determinando que a pessoa só poderá ser presa após o trânsito em julgado da decisão judicial. O que é o trânsito em julgado? É aquela decisão que não comporta mais nenhuma espécie de discussão. Ou seja, transitou definitivamente e, portanto, este título estaria apto a ser executado no caso de uma prisão com restrição de liberdade. O cidadão poderia iniciar o cumprimento da pena.
“Cá entre nós, o Supremo disse apenas uma obviedade. Porque ninguém pode ser considerado culpado, por força da própria Constituição, antes do trânsito em julgado. Isso é uma garantia da cidadania. Uma cláusula pétrea”.
Arthur Coelho: É constitucional?
Francisco Cruz: No julgamento de ontem, o STF apenas disse que este comando é constitucional e que ninguém pode ser preso antes que se esgote todos os recursos. Ou seja, cá entre nós, o Supremo disse apenas uma obviedade. Porque ninguém pode ser considerado culpado, por força da própria Constituição, antes do trânsito em julgado. Isso é uma garantia da cidadania. Uma cláusula pétrea. O grande problema é que, normalmente, quando a gente vai discutir esses temas jurídicos, tende a discutir o nome das pessoas eventualmente envolvidas. Se o fulano deve ou não deve ser preso. E nunca se discute abstratamente, sistemicamente. Ora, isso é uma garantia constitucional.
“Então, a decisão do STF de ontem não se constitui em nenhuma novidade. Ela é apenas a consolidação do Estado democrático de direito (…) Os juízes não estão proibidos de decretar prisão de pessoas na sentença condenatória”.
Rosiene Carvalho: A regra que deve valer de forma igualitária a todos.
Francisco Cruz: Igualmente a todos. É isso. Hoje se discute muito isso em razão da situação do ex-presidente. Mas temos que compreender que a Constituição é para todos, seja ex-presidente, seja para o futuro, seja não presidente, sejamos nós que somos pessoas simples, trabalhadoras. Então, a decisão do STF de ontem não se constitui em nenhuma novidade. Ela é apenas a consolidação do Estado democrático de direito. E, quem der causa, por exemplo, para tumultuar o processo, para comprometer a regular instrução, essas pessoas devem ser presas no curso da ação penal. Não alterou nada, neste sentido. Os juízes não estão proibidos de decretar prisão de pessoas na sentença condenatória.
Rosiene Carvalho: E nem há uma soltura imediata dos mais de quatro mil presos nesta condição…
Francisco Cruz: E nem uma soltura imediata. Aquilo que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) publicou que vai atingir imediatamente cinco mil presos. Não é bem isso. Essa situação das pessoas presas será analisada individualmente. Se não tiver motivos para mantê-los na prisão, serão colocados em liberdade. Se houver motivação para mantê-los presos, serão mantidos. É só isso. Essa decisão não carrega consigo maiores inovações.
Rosiene Carvalho: Então, em resumo, o STF compreendeu que a prisão em 2ª instância adianta a pena e a culpa e essa culpa, pela Constituição, só pode ser entendida a partir do trânsito em julgado?
Francisco Cruz: Exatamente. Você fez uma síntese perfeita. O que acontece com o cumprimento da pena sem o trânsito em julgado? O cumprimento antecipado da pena. E se, porventura, a pessoa for reconhecida inocente posteriormente? Como fica essa situação? Ou seja, o sistema jurídico brasileiro, aliás, precisamos dizer às pessoas, que essa decisão anterior do STF de 2016 não obrigava o juiz a prender ninguém. Continuava sendo facultativo. Se as circunstâncias indicassem como necessárias, aí sim, seria recolhido antecipadamente sem o trânsito. Se fez uma grande confusão e se começou a prender as pessoas depois do segundo grau como se o Supremo tivesse dito que era obrigatório. E, na verdade, era uma faculdade que o juiz tinha de analisar caso a caso. Isso que tem que ser compreendido por todos nós.
“A impressão que passa é que está todo mundo jogando para torcida: o Supremo decidiu assim, mas o Congresso pode modificar. Enfim, a segurança jurídica vai para o ralo, né?”
Arthur Coelho: Doutor, depois do voto o presidente do STF, Dias Toffoli, muitos parlamentares se manifestaram no sentido de que o ministro deu uma senha para que eles possam modificar a legislação sem que a Corte se sinta confrontada. O senhor analisa desta forma também?
Francisco Cruz: A decisão do STF de ontem disse com todas as letras que o artigo 283 do CPP é constitucional, significa dizer que ninguém poderá ser preso antes do trânsito em julgado, salvo aquelas hipóteses de prisão cautelar. Ponto. Foi isso que o STF disse numa ação declaratória de constitucionalidade. Agora, vai para uma casa legislativa e vão dizer: “vamos discutir agora, porque bem que podia ser executado depois de uma decisão do STJ”. Uma espécie de terceiro grau de jurisdição. Ora, se essa norma for editada por meio de uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) e alguém decidir discutir isso no STF, o Supremo, por uma questão sistêmica de lógica, terá que dizer que o comando também é inconstitucional. Entendeu? Então, a impressão que passa é que está todo mundo jogando para torcida: o Supremo decidiu assim, mas o Congresso pode modificar. Enfim, a segurança jurídica vai para o ralo, né?
Rosiene Carvalho: Ontem, ouvi um jurista comentando a decisão do Supremo e dizendo que é definitiva enquanto dure. O senhor falou da possibilidade que o legislativo pode alterar a questão. O STF já alterou o curso de entendimentos jurídicos, em outros assuntos, sem o legislativo alterar a legislação. Então, essa sensação de que há decisões para atender a uma pessoa, essa sensação que as pessoas têm de impunidade, isso também não tem parcela de culpa do Supremo?
Francisco Cruz: Não gostaria de apontar culpa para este ou aquele. Eu diria que isso é uma questão sistêmica. Dizem até que quando o parlamento não legisla, obriga o judiciário a legislar para suprir. Ora, não está certo nem o parlamento se omitir e nem o judiciário julgar para suprir eventuais lacunas existentes na lei. O que tem que haver é independência e harmonia entre os poderes. E os poderes compreenderem que só existem em razão da sociedade, que existem para servir a sociedade. O judiciário para mediar os conflitos. O legislativo para editar as normas de pacificação social. Portanto, deveriam viver em harmonia olhando sempre a sociedade não seus próprios umbigos. Não assisto às sessões do STF porque não assisto televisão, em geral.
“Eu acho que o judiciário tem que ser muito mais moderno e, inclusive, muito mais modesto. Compreender que eles não estão auditando o Olimpo. Estão lá como servidores público para traduzir as normas a serviço do bem comum. A serviço da sociedade e não a serviço de suas próprias vaidades.”
Arthur Coelho: Por que?
Francisco Cruz: Aquilo é um culto à vaidade. Cada um dá um show particular. Duas horas em cada voto. Qual a necessidade daquilo? A sociedade nem compreende direito aquela linguagem empolada. Às vezes com uma postura arrogante. Eu acho que o judiciário tem que ser muito mais moderno e, inclusive, muito mais modesto. Compreender que eles não estão auditando o Olimpo. Estão lá como servidores público para traduzir as normas a serviço do bem comum. A serviço da sociedade e não a serviço de suas próprias vaidades.
Rosiene Carvalho: A tentativa de maior equilíbrio, de se ter menos impunidade, que era a tentativa da prisão em 2ª instância, onde fica isso agora? E qual alternativa mais segura para que o País não tivesse denúncias em discussão eternas nos tribunais sem que os responsáveis sejam punidos?
Francisco Cruz: A questão da impunidade tem diversas causas, inclusive essa possibilidade infinita de recursos que há no sistema brasileiro. Mas nós temos como enfrentar essa, que se chama nos corredores forenses, chicana jurídica (dificuldade criada no decorrer do processo). São exatamente aqueles expedientes procrastinatórios para proteger os réus poderosos que tem proteção financeira e judicial. Mas há mecanismos para isso. O juízo ao julgar um processo, um recursos desses flagrantemente impertinente, incabível, que tem o caráter meramente procrastinatório, ele pode condenar por litigância de má fé. E, portanto, há mecanismos processuais para inibir essa prática verdadeiramente desrespeitosa para que haja procrastinação do processo até a prescrição. Agora, o ministro enviou um projeto de lei para a casa legislativa propondo que enquanto não houver o transito em julgado também está suspenso o prazo de prescrição.
“Não é correto pensar que se colocar todo mundo na cadeia, nunca mais haverá crime”.
Arhur Coelho: Há alternativas?
Francisco Cruz: Então, é um conjunto de coisas que a gente precisa discutir com serenidade. Com menos vaidade e com mais compromisso com a coisa pública. A cadeia é uma das ferramentas à disposição da sociedade, mas ela não tem poder mágico para acabar com toda a delinquência por meio da cadeia. Por exemplo, o Mensalão colocou várias pessoas na cadeia e não foi suficiente para acabar com a delinquência que continua nos bastidores da oficialidade. Não é correto pensar que se colocar todo mundo na cadeia, nunca mais haverá crime. A cadeia é a última alternativa e tem que se colocar os que causam o mal à sociedade. Os que não sabem viver em sociedade. O corrupto, na minha opinião, nem deveria ir para a cadeia. Tinha que tirar tudo dele. Torná-lo pobre. Obrigá-lo a trabalhar como a maioria do povo faz e não cadeia. Também criou-se um ambiente no Brasil de que apenas a prisão é a solução. Se não está preso, parece que não houve justiça e pode haver punição sem necessidade de encarceramento.
Foto: Francisco Cruz – Divulgação