Caso Flávio: conclusão da perícia mostra os detalhes do “susto” que virou assassinato

Falio Rodrigues
Imagem: reprodução de foto do cadáver no laudo sobre o homicídio.

Um ano após o assassinato do engenheiro Flávio Rodrigues, o Instituto de Criminalística do Departamento de Polícia Técnico-Científica do Estado do Amazonas concluiu laudo de reprodução simulada do caso, que leva em consideração exames, provas do caso e declarações dos envoldidos.

A principal constatação do laudo é que Flávio chegou vivo ao local onde o cadáver dele foi encontrado. O laudo, que o blog teve acesso, foi assinado na ultima segunda-feira, dia 19, pelos peritos criminais Mahatma Sonhará Araújo do Porto, Christian Anderson F. da Gama e Bráulio Leite Pedroso.

Flávio foi assassinado no dia 29 de setembro de 2019 após participar de uma festa regada a álcool e cocaína na casa de Alejandro Valeiko, enteado do prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB).

No inquérito, a Polícia Civil diz que Flávio foi vítima de “morte violenta”, praticada de forma “dolosa, premeditada e por meio de tortura”. Além de Alejandro, foram indiciados no crime a outra enteada do prefeito Paola Valeiko, um funcionário da segurança do prefeito, Elizeu da Paz; e o lutador de MMA e amigo de Elizeu, Mayc Parede.

O funcionário da prefeitura disse, em depoimento, que sua função era manter uma espécie de vigilância sobre o enteado do prefeito.

O inquérito, concluído em novembro do ano passado, não apontava o local em que Flávio foi assassinado e ainda negava que a morte tivesse ocorrido no terreno baldio. A Polícia Civil afirmou que, de acordo com a perícia realizada no ponto em que o corpo do engenheiro foi localizado, aquele não havia sido o local da morte.

A reportagem procurou a defesa de Aljandro e Paola Valeiko, que declarou que o laudo só reforça a inocência de seu cliente e que ele foi mais uma vítima do crime. Disse que só irá se manifestar com mais detalhes nos autos quando todas as demais perícias forem anexadas ao mesmo.

Os advogados de Maic Parede e Elizeu da Paz também foram procurados. O primeiro disse que iria consultar o escritório para depois enviar nota. O segundo não respondeu à reportagem.

Trecho do laudo mostra corpo da vítima no terreno baldio, onde foi enconrado

“Múltiplas agressões”

O laudo finalizado nesta segunda-feira afirma que antes de morrer o engenheiro passou por momentos de extrema violência. Conforme a perícia, o engenheiro Flávio Rodrigues dos Santos, ainda vivo, sofreu múltiplas agressões físicas com uso de instrumento rígido na região da cabeça.

Ele também sofreu “sufocação direta e indireta”, o que o impediu de respirar e pedir socorro; foi ferido em sete partes do corpo (pernas, braços e abdômen) por um instrumento ‘perfurocortante’; foi transportado ferido no banco traseiro do carro da Prefeitura de Manaus; e arrastado ainda com vida por “superfície rígida e áspera”. O local onde o cadáver de Flávio foi encontrado, segundo o laudo, era de superfície argilosa.

Estas últimas informações levantam dúvidas se Flávio foi arrastado e ferido na casa de Alejandro. O laudo não é objetivo sobre estas questões na parte da análise da perícia. Mas o trecho do arrastamento em superfície argilosa consta, na montagem cronológica também constante no laudo, no momento em que o engenheiro está no terreno baldio, onde seu corpo foi encontrado.

“Os resultados dos exames periciais realizados no veículo e nas amostras de sangue coletadas em seu interior sugerem que Flávio Rodrigues dos Santos foi ferido e/ou foi transportado ferido sobre o assento do banco traseiro do veículo Toyota Corolla, placa PHY-8178, o qual posteriormente foi objeto de procedimento de limpeza”, diz trecho do laudo sobre a perícia feita no carro da prefeitura usado como transporte coercitivo da vítima.

De acordo com o laudo, o engenheiro também pode ter tido movimentação corporal vertical e horizontal, ou seja, de pé e deitado, no local onde o cadáver dele foi encontrado “em função da impregnação de material argiloso depositado na superfície corporal”.

O laudo identifica o solo do terreno baldio onde o corpo dele foi achado como argiloso: “os vestígios analisados sugerem que Flávio Rodrigues dos Santos teve contato ativo com solo argiloso encharcado, provavelmente devido à intensa precipitação pluvial ocorrida em dias anteriores“.

Segundo os exames, Flávio morreu em função de dois ferimentos na região abdominal esquerda, com lesões “das alças intestinais que provocou anemia aguda e levou ao óbito”.

Sobre a asfixia, o laudo informa que pode ter ocorrido em função da fita usada para vedar a boca dele e uma pressão excessiva, que se presume ter sido a que Mayc Parede diz ter feito quando retirou o engenheiro do condomínio.

“Os dados sugerem que Flávio Rodrigues dos Santos, antes do óbito, sofrera sufocação direta por obstrução das vias orais, provavelmente com o uso de fita adesiva, e, ainda, sufocação indireta, possivelmente por compressão do tórax por força estranha excessiva”.

Cena do crime

Para a perícia, a casa do enteado do prefeito de Manaus, o carro da prefeitura, o terreno baldio em que o cadáver do engenheiro foi encontrado e o local na frente, onde as roupas de Flávio foram jogadas, compõem os locais de apuração técnica dos indícios e vestígios do crime. O local com maior número de vestígios é o terreno baldio onde o corpo de Flávio foi encontrado, segundo o laudo. A perícia destaca ainda que o carro da prefeitura e casa de Alejandro passaram por limpezas após os acontecimentos.

Trecho do laudo mostra blusa de Flávio foi jogada no terreno em frente ao local onde o cadáver dele foi encontrado

Trecho do laudo mostra bermuda de Flávio foi jogada no terreno em frente ao local onde o cadáver dele foi encontrado

Pontos cegos

Na reconstituição do crime, os peritos analisam convergências e divergências das pessoas presentes na casa no dia em que Flávio foi assassinado.

A análise das falas das pessoas presentes na cena do crime não explica a razão do cozinheiro Vittorio Del Gatto ter permanecido todo o período que a confusão durou no quarto sem ouvir nada e se isso seria possível. Em depoimento à polícia, Vittório disse que morava na casa e cozinhava para o enteado do prefeito sem receber nada pelo trabalho, que fazia de forma voluntária.

A reação de todos no momento em que a casa é invadida por Elizeu é apresentada no laudo, menos a da vítima. Nenhuma das falas conta como Flávio reagiu neste exato momento. Ele só é citado por Elizeu, Mayc e Alejandro no momento em que é levado da casa.

Mayc diz que foi depois que Flávio tentou dar um murro nele, sendo que Alejandro diz que o lutador de MM não entrou na casa e que quem arrastou Flávio ate o carro foi Elizeu, o funcionário da prefeitura.

O laudo repete em vários trechos a reação de José Edvandro Júnior, um dos convidados de Alejandro, no momento da invasão da casa. Ele diz ter se escondido no banheiro quando viu o homem encapuzado. Júnior fala que o homem encapuzado, que é o Elizeu, entrou na casa e perguntou: “Cadê seu amigo?”.

As conversas de WhatsApp entre Elizeu e a portaria do condomínio, que constam no inquérito, citavam o nome de Flávio e não constam na cronologia dos fatos postos no laudo.

Já Elizeu diz que o que ele teria dito ao entrar na casa é “Cadê a droga? Cadê o dinheiro”. Alejandro diz que foi apenas “Cadê o dinheiro”. Estes dois relatos coincidem com a narrativa apresentada horas depois do assassinato pelo prefeito de Manaus, Arthur Neto horas depois do crime pelo prefeito de Manaus em suas redes sociais.

Arthur disse que a casa, localizada dentro de um condomínio de luxo, foi invadida por traficantes que sequestraram e mataram Flávio em função de dividas que o engenheiro tinha com o tráfico de drogas. Na ocasião, Arhtur pediu que cessassem as suspeitas sobre o enteado antes mesmo da polícia iniciar a investigação.

“A casa de Alejandro foi invadida na noite do último domingo. Dois homens encapuzados, “cobrando” dinheiro a um dos presentes. Um dos meninos se trancou no banheiro e Alejandro recebeu golpe de coronha que lhe abriu a cabeça. Levaram o que queriam: o rapaz Flavio, a quem “cobravam” pagamento pelo trabalho maldito que leva pessoas à perdição (…) Sequestraram e assassinaram Flavio”, afirma o prefeito de Manaus na ocasião em sua rede social.

As declarações do prefeito causaram revolta na família e amigos da vítima, na ocasião.

A análise das versões também não esclarece porquê “aleatoriamente” e “sem motivação” o homem mais forte do grupo ter sido o escolhido para ser imobilizado e levado para fora do condomínio. A reconstituição do crime não deixa clara a motivação para tamanha violência com que Flávio foi tratado.

Assim como o inquérito e a denúncia do MP-AM (Ministério Público do Estado do Amazonas), o relatório não apresenta qualquer dado ou análise sobre os contados feitos pelo funcionário da prefeitura antes da ação e nem sobre apuração a respeito da razão de um carro e uma funcionário da prefeitura estarem na cena do crime.

Após muitas críticas e quase um ano depois do crime, o MP-AM instaurou um procedimento para iniciar a apuração de eventual improbidade administrativa do prefeito no episódio em função da presença do carro e de um funcionário da sua segurança na cena do homicídio.

A investigação foi instaurada a três meses do final do mandato, segundo dados informados em matéria do jornal A Crítica do último dia 14 de setembro.

Susto: “quando um pai e uma mãe tem intenção de corrigi-lo”

Sem dar detalhes, Elizeu disse que foi a casa do enteado do prefeito de Manaus “dar um susto nele’ e diz que foi ele (Elizeu) que “tomou a atitude do susto”. Em declaração à polícia, afirma que a medida poderia fazer Alejandro repensar.

“A minha intenção era assustar o Alejandro. Porque, tipo assim, se colocar o medo nele geralmente não ia mais praticar o que ele que tava praticando, né, consumo de drogas excessivo, dando esse transtorno que ele sempre dá. (…)”, informa trecho do laudo sobre declaração de Elizeu.

Ainda sobre o “susto”, Elizeu diz que “quando um pai ou uma mãe” tem um filho nesta condição “tem a intenção de corrigí-lo”. Diz ‘achar” que foi este sentimento dele naquele momento, “de tanto que gostava de Alejandro”.

“De tanto gostar dele que eu tomei essa atitude, pra ele ter na consciência dele que tava errado. Quando um pai ou uma mãe tem seu filho tem a intenção de corrigi-lo, eu acho que essa foi o meu sentimento naquele momento”, afirmou Elizeu segundo outro trecho que consta no laudo sobre o crime.

Reconstituição do crime e versões

O laudo também traz uma análise cronológica dos acontecimentos da noite do dia 29 de setembro, a partir da reconstituição do crime e as versões convergentes das pessoas presentes.

Entre as versões convergentes estão a que a abordagem ocorreu na casa de Alejandro entre 21h e 22h do dia 29 de setembro; que Elielton Magno empreendeu fuga até a portaria, outro convidado de Valeiko no dia do crime.

A denúncia apresentada pelo MP acusa Elizeu da Paz, Alejandro Valeiko, Paola Valeiko e Maic Parede pelo crime. Paola foi denunciada por ter limpado vestígios de sangue da casa do irmão. Os demais presentes na casa de Alejandro no dia do crime não foram denunciados.

A reportagem procurou a Semcom (Secretaria Municipal de Comunicação) para saber se prefeito e primeira-dama Elisabeth Valeiko gostariam de se manifestar sobre o caso e não recebeu resposta.

A advogada da família de Flávio Rodrigues também foi procurada e não respondeu às mensagens da reportagem.

Veja os detalhes da cronologia dos acontecimentos montada a partir das versões e dos registros do dia do crime:

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/11/28/manaus-enteados-do-prefeito-arthur-virgilio-sao-indiciados-por-assassinato.htm