Com atropelos no enfrentamento à pandemia, secretária é punida por compra que não realizou

Foto: Secretária da Susam, Simone Papaiz, faz pose com máscara em frente ao Delphina Aziz, nesta sexta-feira, dia 10, data em que o hospital colapsou e ficou sem leitos para pacientes. Simone é a que faz gestos com os braços abertos na foto. (Divulgação/Governo do Amazonas).

Pouco mais de um mês depois de deixar o município paulita de Bertioga e se tornar secretária da Susam, fazer foto posada em frente ao Delphina Aziz no dia que a unidade entrou em colapso de vagas, contrair covid-19 e o Amazonas pular de 23 para 1098 mortes pela doença em sua gestão, a secretária de Estado de Saúde, Simone Papaiz, entrou na mira do TCE (Tribunal de Contas do Estado).

Por unanimidade de votos e em medida não rotineira contra secretário de Estado em exercício, os conselheiros do TCE-AM aplicaram multa de R$ 75.099,15 e recomendaram que o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), afaste em definitivo do cargo a ex-titular da saúde de Bertioga, no litoral paulista.

O motivo, segundo os conselheiros, é a compra com sobrepreço de 28 respiradores inadequados ao tratamento de pacientes com covid-19, publicada em primeira mão pela jornalista Cynthia Blink no site Amazonês e denunciada pelo MPC (Ministério Público de Contas).

Além disso, o MPC aponta “obstáculos ao controle externo da gestão”. “Houve grave e inafastável obstáculo ao controle externo”, disse em seu voto a conselheira relatora do processo, Yara Lins.

No voto em que aponta sobrepreço de pelo menos R$ 49 mil em cada um dos 28 respiradores que não servem para salvar vidas de pacientes com covid-19, a conselheira não apontou responsabilidade do ato do ex-secretário de saúde Rodrigo Tobias e nem do governador Wilson Lima, que desde o início da polêmica chamou para si o protagonismo do assunto.

Pela projeção do TCE, a aquisição de respiradores que não servem para atender a necessidade da pandemia no sentido de salvar vidas, foi feita com dispensa de licitação e pagando R$ 1,372 milhão a mais ao fornecedor do produto.

O TCE recomendou também que a recomendação e decisão de multa seja comunicada ao MPE-AM (Ministério Público do Estado ) para que o órgão adote medidas, se julgar necessário, de bloqueio dos bens da empresa beneficiada na contratação irregular e dos sócios da mesma.

Outra determinação do TCE é que, caso o valor já tenha sido pago pelo estado, a secretária ressarça o dano aos cofres públicos.

Empenho

O emprenho do pagamento foi feito no dia em que Papaiz assumiu a pasta. Em tese, ela não teria participado das tratativas da contratação.

Mas cai na conta dela, pelo voto da conselheira Yara Lins acompanhado pelos demais membros do TCE, os obstáculos criados ao controle externo .

Em seu voto, Yara Lins informou que determinou à Susam instalação de UTIs em municípios do interior do Amazonas e concedeu prazo de cinco dias para a resposta, que, segundo a conselheira, não foram encaminhadas ao TCE.

Falta transparência

O MPF (Ministério Público Federal) e o Ministério Público do Estado do Amazonas (MP/AM) também constaram obstrução às ações do governo e do uso do dinheiro público.

Em função disso, em abril solicitaram e a Justiça Federal condenou o Governo do Amazonas a dar amplo acesso à população em geral, aos órgãos de controle e à imprensa sobre a evolução e o enfrentamento da covid-19 no estado.

 “Sem informações precisas sobre o número de leitos disponíveis não é possível que  Ministério Público atue para cobrar do governo federal apoio efetivo para a ampliação da estrutura de atendimento”, informou o MPF sobre a ação em seu site, na ocasião.

No dia 5 de abril, durante uma live do governo, o então secretário de saúde, Rodrigo Tobias, declarou que o Amazonas estava a 5% do colapso no sistema de saúde.

Dois dias depois, perdeu o cargo e foi substituído pela secretária do município do litoral paulista Bertioga.

Papaiz saiu da direção da pasta de saúde de um município 490, 03 quilômetros quadrados e com uma população 57.942 habitantes para coordenar o problemático sistema de saúde de 4 milhões de habitantes  espalhados  num estado de dimensões continentais, em meio a uma pandemia.

Com a escalada de infectados e óbitos da covid no Amazonas, nunca ficou claro como o nome de Simone Papaiz chegou a ser indicado para a escolha do governador Wilson Lima. Sem experiência na gestão pública, o ex-apresentador de TV colocou para assessorá-lo na pior crise da saúde do Estado uma pessoa que não tinha experiência na área de saúde no Amazonas.

Blindagem

Em abril, a ALE-AM aprovou a convocação de Simone Papaiz para apresentar ao poder legislativo o plano da Susam de enfrentamento à pandemia. Os deputados da base blindaram a secretária e conseguiram adiar por uma semana o cumprimento à convocação. A PGE recorreu à justiça para tentar impedir a secretária de prestar os esclarecimentos ao poder legilslativo.

Caos na rede estadual de saúde

Desde que Tobias foi afastado, nenhum outro dado oficial foi divulgado sobre o colapso do sistema de saúde, enquanto outros estados já admitiram ter chegado a 100% de ocupação de vagas de UTI.

Manaus, no entanto, choca o mundo com imagens divulgadas por profissionais da saúde e familiares de vítimas de covid, neste último mês: cadáveres de pessoas que não conseguiram remoção para unidades com respiradores lado a lado com pacientes em hospitais; médicos improvisando, em unidades periféricas do sistema, respiradores com saco plástico; aumento do número de óbitos que provocaram enterros em valas comuns dos mortos.

Além de vários casos de pessoas que morreram em casa sem atendimento e sem acesso imediato ao serviço funeral, que deixou familiares tendo que conviver com a dor da morte de seus familiares e mal cheiro do cadáver deles em casa.

Em um mês, entre 13 de abril e 13 de maio, o Amazonas registrou 1036 mortes por covid-19. Até 12 de abril, o número de óbitos era de 62.

Só do dia em que Papaiz assumiu, 8 de abril, até a atualização desta terça-feira, dia 12, foram registrados pelo governo 1075 mortes por covid-19. Antes, o registro oficial era de 23 óbitos.

A explosão de casos, no último mês que colocou o Amazonas na liderança disparada de óbitos pela doença, não considera a alta subnotificação, admitida pelo governo. O aumento do número de enterros foi muito superior aos registros oficiais da FVS, em abril e início de maio.

Resposta do governo

A exemplo da reação que teve o governador Wilson Lima quando a justiça determinou a suspensão do pagamento do hospital de campanha até esclarecimentos sobre o contrato e valor, o governo emitiu nota enviada à imprensa em que nega superfaturamento na compra dos respiradores inadequados aos pacientes adquiridos com valor acima do preço de mercado.

“Os processos de compra foram feitos de forma totalmente transparente, tudo seguindo conforme determina a lei”., afirma a nota em resposta à recomendação feita pelo TCE-AM.

A nota, em resposta à constatação do órgão de controle externo, afirma ainda que o governo criou uma “comissão interna de sindicância para apurar informações necessárias que possam esclarecer qualquer dúvida dos órgãos de controle” e “esclarece” que todo o processo está sob a supervisão da CGE (Controladoria Geral do Estado), que audita as aquisições com dinheiro público.

A CGE é outro órgão da estrutura interna do governo.

Quando foi questionado pela imprensa da decisão judicial sobre o hospital de campanha, o governador Wilson Lima declarou que só deixaria de construir a unidade se passassem “por cima do cadáver dele”, sendo que a decisão era apenas de suspensão do pagamento para que o governo esclarecesse sobre o uso dos recursos público.

No mesmo dia, Lima gravou vídeo dizendo que se excedeu nas declarações e usou os instrumentos jurídicos adotados na democracia para reverter decisão judicial: recurso ao tribunal.  

A maior taxa de incidência do Brasil

A taxa de incidência média de covid-19 no estado do Amazonas é de 223 casos por 100 mil habitantes, três vezes superior à taxa média nacional que é de 59 casos por 100 mil habitantes, segundo dados divulgados no último Boletim Epidemiológico da Fundação de Vigilância Sanitária (FVS) do Amazonas.

De acordo com projeção publicada pelo instituto britânico Imperial College, na semana passada, o Amazonas é disparado o estado com mais alta taxa de morte por covid-19 no País. O estado tem índice de 178 mortes para cada 1 milhão de habitantes, enquanto o segundo lugar, o Estado do Ceará, registra 92 mortes para cada 1 milhão de habitantes.