CPI da Covid: estudo da proxalutamina é um dos crimes contra humanidade praticados no Amazonas

Foto: Raphael Alves do projeto Insulae

O relatório final da CPI da Covid concluiu que os ensaios clínicos da proxalutamida realizados no Amazonas se enquadram entre os crimes contra a humanidade praticados no estado. O relatório afirma que o “experimento científico desobedeceu os limites determinados pela Conep (Conselho Nacional de Ética em Pesquisa)”. Na última segunda-feira, dia 22, os senadores Omar Aziz (PSD) e Randolfe Rodrigues (Rede) entregaram ao MPF (Ministério Público FederaL) no Amazonas o relatório.

“Um último caso, de crime contra a humanidade, mais uma vez praticado no bojo de um experimento científico que desobeceu os limites determinados pela Conep, ocorreu na cidade de Manaus, quando houve a utilização indevida de proxalutamida pelo médico Flávio Adsuara Cadegiani para o tratamento da covid-19”, afirma trecho do relatório.

Apesar disso, o único indiciado na CPI em função da proxalutamida foi o médico responsável pelo estudo Flavio Cadegiani. A comissão deu tratamento diferente às pessoas envolvidas na divulgação, defesa e utilização em pacientes de medicamentos sem comprovação científica comprovada para covid-19 ou estudos questionados na investigação, como no caso da Prevent Senior.

A CPI se justifica, no relatório, que não houve tempo suficiente para se aprofundar na questão.

A Prevent Senior é uma empresa de planos de saúde proprietária de vários hospitais que conduziu estudos com cloroquina. Médicos, proprietários e diretores da empresa estão entre os indiciados da CPI da Covid. Usada em testes para câncer de próstata, a proxalutamida fez parte de um tratamento experimental patrocinado pela rede de hospitais e plano de saúde Samel. A empresa amazonense não é citada nem uma vez no relatório final da CPI da Covid.

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) suspendeu, no mês de setembro, o uso de produtos contendo a substância em pesquisas científicas no Brasil. A Samel se posiciona sobre o experimento, desde que o assunto repercutiu na mídia nacional, indicando que não responde pelas mortes ocorridas em hospitais que não fazem parte de sua rede, que estes questionamentos devem ser direcionados às unidades onde os pacientes morreram e ao responsável pela pesquisa. O grupo empresarial nega também qualquer irregularidade.

A CPI da Covid tinha entre os membros dois senadores do Amazonas, o senador Omar Aziz (PSD), que presidiu a comissão, e o senador Eduardo Braga (MDB). O deputado estadual Ricardo Nicolau (Solidariedade), da família dos proprietário da Samel, era membro fundador do PSD.

Em resposta ao site UOL, em matéria publicada em 1º de outubro, ouvindo a família de uma das voluntárias do estudo que morreu, a assessoria de comunicação de Omar informou que o deputado Nicolau se desfiliou do partido dele em setembro e que caso estava sendo analisado em uma das linhas de investigação sob responsabilidade do senador Otto Alencar (PSD-BA).

Em entrevista à rádio BandNews Difusora, o deputado Nicolau, no início de novembro, se posicionou sobre o assunto. Para o parlamentar, a Unesco foi induzida ao erro. Ele alega que há perseguição política ao estudo em função do mesmo ter sido defendido e elogiado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Nicolau afirma que a Samel tem 40 anos de funcionamento, é uma empresa respeitada e de grandes serviços prestados ao Amazonas, inclusive durante a pandemia.

Nicolau destacou a atuação do Hospital de Campanha que em 2020 atendeu pacientes de covid-19 em convênio com a Prefeitura de Manaus com menos da metade do índice de mortalidade do registrado nos hospitais do Estado. Para o deputado, há uma narrativa mentirosa em cima de um ato humanitário.

“Mesmo nas coisas feitas de coração a política tenta inverter e colocar um novo viés. A Unesco foi induzida ao erro pelo Conep, que já fez nova publicação sobre a toxidade. A proxalutamida é autorizada em 25 estudos no Brasil. Autorizada nos EUA. É uma medicação que é segura. Dentro do estudo não teve um caso de efeito adversos graves em virtude da medicação, que era aditiva aos protocolos. Os índices dos que receberam a medicação foram satisfatórios” declarou Nicolau.

Ouça o que afirma o deputado, na íntegra:

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Outro lado

A reportagem solicitou resposta da assessoria de comunicação da empresa Samel sobre a decisão do ministro Gilmar Mendes, bem como sobre os posicionamentos do Conep, Unesco e relatório final da CPI da Covid a respeito do estudo da proxalutamida. Os pedidos foram encaminhados por e-mail e solicitados também pelo telefone 994XX-XX95. A assessoria informou que “logo mais” daria retorno, o que não ocorreu até o momento da publicação desta matéria.

CPI cita Unesco: um dos casos mais graves de violação ética em pesquisa e desrespeito aos direitos humanos

O relatório da CPI relaciona o número alto de mortes (200) durante os ensaios à toxidade dos medicamento e destaca que “ainda assim” a pesquisa não foi suspensa.

“De acordo com a Conep, dos 294 voluntários autorizados (na verdade o espaço amostral foi indevidamente ampliado para 645 pacientes no Amazonas), 200 foram à óbito, número estranhamente elevado, possivelmente em razão da toxicidade dos medicamentos ou dos procedimentos de pesquisa”, afirma trecho do relatório da CPI.

No relatório, é reproduzido o posicionamento da Rede Latino-americana e Caribenha de Bioética (Redbioética) da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) classificando o estudo como “um dos casos mais graves de violação ética em pesquisas e de desrespeito aos direitos humanos dos participantes na história da América Latina”.

A Unesco se posicionou no início de outubro. A CPI foi concluída no final de outubro.

O médico responsável pelo estudo Flavio Cadegiani já se manifestou sobre a nota da Unesco afirmando que a mesma foi induzida ao erro, alegando que os mortos são os que tomaram placebo (substância inerte usada nos estudos) e negando irregularidades.

De acordo com nota publicada pelo Conep em 15 de outubro deste ano, o conselho sustenta que a pesquisa foi interrompida por descumprir normas e não por motivação política ou pelo resultado da pesquisa. Faz-se necessário reafirmar que a pesquisa foi interrompida por descumprimento das normas, e não por motivação política. “Tanto é que outros estudos com o mesmo medicamento continuaram o curso por atenderem as normas de ética em pesquisa no país”, afirma trecho da nota.

Crime contra a humanidade

O estudo da proxalutamida em amazonenes pacientes de covid-19 durante o segundo pico e colapso do sistema de saúde no estado é citado, no relatório da CPI da Covid, no capítulo que trata sobre crimes contra a humanidade.

O crime, segundo o relatório, é previsto no Tratado de Roma do Tribunal Penal Interacional, cujo o estado brasileiro incorporou por meio do Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. A legislação traduz este crime como “ato desumano que afete gravemente a integridade física ou a saúde física ou
mental”.

Segundo o relatório final da CPI, o caso chegou ao conhecimento da comissão por meio do Ofício 829 do Conep, que informou ao Ministério Público Federal “irregularidades na pesquisa “relativa à utilização do medicamento proxalutamida para o tratamento da covid-19, sob a responsabilidade do médico Flávio Adsuara Cadegiani, na cidade de Manaus”.

Falhas graves

O relatório final da CPI da Covid relaciona entre as “falhas graves do estudo”: alteração do local da pesquisa – era para ter sido Brasília – e do número de participantes autorizados pelo Conep; e não apresentação de termos de consentimento livre e esclarecido (TCLE) dos pacientes.

Outro fator apontado, pela CPI da Covid, como falha é a inclusão, no ensaio, de pacientes graves: “o que não fazia parte do pedido de autorização original”, informa relatório.

O relatório final da CPI da Covid considera que mais grave que o desrespeito ao que foi autorizado pela Conep foram as mortes de 200 dos 645 pacientes no Amazonas. A autorização do Conep era de apenas 294 pacientes voluntários.

“Esse número anormalmente alto de mortes de pacientes do estudo, junto com a falta de análise crítica que permita conhecer a causa mortis, sugere que as mortes possam ter sido causadas por toxicidade medicamentosa ou pelos procedimentos da pesquisa.”, afirma outro trecho do relatório da CPI da Covid.

A CPI diz que a pesquisa deixa perceber que os pacientes do Amazonas foram tratados como cobaias humanas.

“Mais uma vez aqui vemos seres humanos tratados como cobaias, e, mesmo assim, também esse medicamento foi defendido publicamente pelo Presidente Jair Bolsonaro”

A proxalutamida também é citada no relatório como ponto negativo na atuação do Secretário de Ciência,
Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, do Ministério da Saúde, Hélio Angotti Neto, outro indiciado pela comissão.

De acordo com o relatório, Angotti Neto apresentou e defendeu em live com o presidente da República, Jair Bolsonaro, dados da pesquisa feita no Amazonas usando a proxalutamida na covid-19, no dia 9 de abril e de 2021.

Conep: “Assistiram pessoas morrerem passivamente”

Ainda de acordo com nota publicada pelo Conep em 15 de outubro deste ano, o Conep afirma que o estudo deveria ocorrer do ponto de vista cego sobre quem estava usando placebo ou proxalutamida. Uma vez que se constatasse o número elevados de mortes, “do ponto de vista ético, era mandatório interromper o cegamento do ensaio clínico para verificar se os óbitos estariam associados à toxicidade do medicamento ou se o grupo controle estaria em desvantagem por suposta eficácia da proxalutamida”.

“Se de fato a proxalutamida foi eficaz (como alegado pelo pesquisador), o fato é que se assistiu pessoas morrerem PASSIVAMENTE no grupo controle sem que se adotasse qualquer medida que pudesse beneficiá-las com o medicamento experimental”, afirma trecho da nota do Conep.

Problema é a conduta ética e não o resultado da pesquisa, diz Conep

Na mesma nota, o Conep esclarece que os questionamentos levantados pelo conselho a respeito do ensaio clínico com a proxalutamida “não estão relacionados com os resultados de eficácia notados na pesquisa”. Para o Conep, neste momento, o problema é a “conduta ética do pesquisador e do Comitê Independente de Monitoramento de Dados que, em momento algum, interromperam o cegamento para verificar o motivo de excesso de mortes em um dos grupos”.

A nota diz ainda que, no Amazonas, os pacientes que foram voluntários nos estudos não foram devidamente informados a respeitos dos riscos e nem de seus direitos. Um dos problemas sobre a desinformação aos pacientes foi sobre a necessidade de métodos contraceptivos durante o uso da medicação em função de ser contraindicado durante gravidez por implicar em má formação de feto.

“Esse termo destoa profundamente do modelo originalmente aprovado pela Conep, havendo subtração de trechos que garantiam os direitos dos participantes de pesquisa, como indenização e assistência em caso de danos, ressarcimento de gastos, fornecimentos de métodos contraceptivos durante a pesquisa, entre outros. A supressão de tais trechos demonstra a intenção de não informar adequadamente os participantes de pesquisa sobre os seus direitos”.

Essas informação, segundo o Conep, constam em inquérito aberto no MP-AM (Ministério Público do Estado do Amazonas).

“Em toda a história do Conselho Nacional de Saúde, nunca se testemunhou no país tamanho desrespeito às normas de ética e aos participantes de pesquisa. O Conselho Nacional de Saúde defende e sempre defenderá os participantes de pesquisa em seus direitos e a condução segura de estudos que respeitam as normas de ética em pesquisa no país”, finaliza a nota.

‘Possíveis fraudes no estudo da proxalutamida são de interesse público e não podem sofrer censura’