Desde Comala, sobre Kafka, Heidegger e Brecht

*José Alcimar de Oliveira

01. Kafka e Brecht fazem parte do altar cognitivo dos santos de minha profana devoção, com religiosos, ateus e agnósticos. Sigo de algum modo a teologia heterodoxa do jagunço Riobaldo, que não fazia acepção de credo religioso e não se detinha à cata de heresias.

Por falar em heresias, me veio à memória uma afirmação do grande Celso Furtado, cujo centenário de nascimento completa-se nesse 2020: “Nenhuma sociedade consegue livrar-se completamente da ação de heréticos, e nada tem mais importância na história da humanidade do que a heresia”.

          02. Que bela roda de conversa não resultaria, nesse 2020 tão regressivo, do encontro de Engels (200 anos de nascimento), de Weber (no centenário de sua morte), de Florestan e Furtado (no centenário do nascimento).

Quem sabe não poderia esse encontro realizar-se na cidade de Comala, no Velho México, com a mediação de Juan Rulfo. Kafka e Brecht seriam convidados especiais. Não excluiria Heidegger, que rejeitaria o convite sob a alegação de ter retomado seu inconcluso Ser e tempo. O que faria do ser e do tempo em tempos de pós-verdade?

          03. Kafka no México estaria sob as tomadas surreais de Buñuel. Por que o interesse de Buñuel por Kafka? Porque a arte literária de Kafka, que nunca se rendeu a veleidades literárias, pensa, captura e traduz com peculiar e prosaica inteligibilidade artística o cotidiano absurdo das situações absolutamente cotidianas, costumeiras e normalizadas.

Nele o absurdo não é tecido nem de situações nem de construções presididas pelo que julgamos extraordinário. Kafka não mistifica nem mitifica. Percebe o absurdo naturalizado sem recorrer ao artificialismo das construções academicistas.

          04. Sem que tenha dialogado com Brecht, Kafka, em seus textos, como no pequeno grande texto Um relato para uma Academia, antecipa a indicação brechtiana de instaurar “um novo Grande Costume: de refletir novamente diante de cada situação nova”.

Um relato para uma Academia, de Kafka, seria o texto de abertura do Encontro de Comala, seguido de uma exposição dialogada sobre o passado, que não passa, da América Latina apresentada por Juan Rulfo, García Márquez e Manuel Scorza. Em seguida, Kafka concederia uma entrevista a Eduardo Galeano.

          05. Kafka e Heidegger em Comala? Nada a ver. Kafka foi vítima antecipada do que em grande medida Heidegger silenciou. Penso que o conceito de “guarda da ratio”, de Heidegger, como apanágio da Filosofia, foi antecedido e posto em movimento, com estatuto de universalidade, pela alquimia do artesanato literário kafkiano: traduzir o absurdo do cotidiano pela via do cotidiano que naturaliza o absurdo.

Heidegger vai do cotidiano ao acadêmico sem desvelar o absurdo. Kafka toma o cotidiano como lugar de desvelamento e de morada em que o absurdo se naturaliza.

          06. Um relato para uma Academia e Metamorfose seriam apresentados numa peça costurada às pressas por Brecht que, sete dias antes de se deslocar de Berlim para Comala, recebera uma carta assinada por Marx, Nietzsche e Sartre na qual desaconselhavam a já programada apresentação de A exceção e a regra, dado que em 2020, na América Latina, a exceção já se convertera em regra constitucional.

Sob o espectro do marxismo cultural espalharam-se se por toda a cidade de Comala cartazes que estampavam seus mais perigosos representantes. Dentre eles, até o circunspecto pensador de Koenigsberg.

          07. Sob um disfarce de missionário dos novos tempos, vestindo uma túnica que recebera de Antônio Conselheiro, Che Guevara conseguiu distribuir entre os presentes, que participavam como sujeitos épicos da peça brechtiana dos textos de Kafka, uns santinhos com a seguinte inscrição de Brecht: “sob o familiar, descubram o insólito. Sob o cotidiano, desvelem o inexplicável. Que tudo que é considerado habitual provoque inquietação. Na regra, descubram o abuso. E sempre que o abuso for encontrado, encontrem o remédio”. 

*José Alcimar de Oliveira, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas e teólogo sem cátedra, é filho do encontro dos rios Solimões e Jaguaribe. Desde o Observatório Kafkiano do Absurdo, em Manaus, AM, no mês de outubro do ano coronavirano de 2020.