
José Alcimar de Oliveira *
01. Em sua figura corporal frágil habitava um verdadeiro vulcão, feito de ira santa, indignação profética e compromisso evangélico na defesa da vida dos pobres, camponeses, indígenas, contra o latifúndio e a violência dos grandes malfeitores desse Brasil até hoje constituído como uma República Oligárquica de Privilégios.
02. Em 1978, Dom Pedro Casaldáliga participou da cerimônia de ordenação episcopal de Dom Jorge Marskell (1935-1998), outro grande Bispo e Pastor, em Itacoatiara – AM, no dia 05 de maio de 1978.
Ainda jovem estudante de Filosofia e Teologia no CENESCH, em Manaus, me fiz presente naquela inesquecível cerimônia pública, numa ágora tomada pelo povo-multidão, às margens do portentoso rio Amazonas. Era um domingo à tarde.
Na volta para Manaus, Dom Pedro hospedou-se conosco, em São Jorge, na Casa dos Franciscanos da T.O.R. Foi a única vez que o vi pessoalmente.
03. Dom Pedro tornou-se o bispo mais odiado e temido pela ditadura empresarial-militar. Catalão de nascimento, temperamento aguerrido, chegou ao Brasil em 1968 e recebeu a Ordenação Episcopal em 1971, assumindo a Prelazia de São Félix do Araguaia, a nordeste de Mato Grosso, região até hoje dominada pela violência do latifúndio, da grilagem de terras, e assassinatos de encomenda contra camponeses e indígenas.
No dia de sua sagração episcopal, em 23 de outubro de 1971, tornou público um documento, com mais de 120 páginas, elaborado por ele e sua equipe, com a contribuição de cientistas, que se converteu na mais contundente denúncia da política do governo brasileiro para a Amazônia: Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social.
04. Na história da Igreja no Brasil nenhum documento impactou mais o Episcopado do que esse. Dom José Marias Pires (1919-2017), Arcebispo Negro da Paraíba de bandeira vermelha e negra, que se tornou conhecido como Dom Pelé e, aconselhado por Dom Pedro, mudou seu apelido para Dom Zumbi, assim se expressou sobre a contundente Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga:
“Obrigado, Dom Pedro. O senhor diz o que muita gente gostaria de dizer, mas não sabe expressá-lo, ou não tem condições para fazê-lo, ou, se as têm, não tem coragem (…). (Você) (…) usou uma linguagem direta. Sem subterfúgios. Sem adjetivos melífluos, destinado a aparar as arestas e a tirar a força do que se diz. (…). Peço ao Senhor que o conforte na luta, querido Dom Pedro. E que Ele nos ilumine, a todos nós, irmãos no Episcopado, os prelados da Amazônia, sobretudo para que façamos eco ao grito que o senhor deu e nos tornemos mais evangelicamente defensores do pobre e do oprimido. Um fraternal abraço de amigo e admirador. José Maria Pires, arcebispo da Paraíba” (19 de novembro de 1971).
05. Ao longo dos anos trevosos da ditadura, embora recebesse muitos convites para participar de eventos no exterior, Dom Pedro sempre os recusava, porque sabia que os militares impediriam seu retorno ao Brasil caso se ausentasse do país.
Dentre tantas contribuições de Dom Pedro para que o Episcopado brasileiro assumisse em conjunto a luta contra o arbítrio e as agressões do Estado brasileiro aos direitos humanos dos empobrecidos, sobretudo da população negra, dos povos indígenas e dos sem-terra e sem pão, duas iniciativas suas produziram uma inflexão definitiva na pastoral da Igreja: a fundação do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), em 1972, e da CPT (Comissão da Pastoral da Terra), em 1975.
O Jornal Porantim – que na língua Sateré-Mawé significa arma, remo e memória –, do CIMI, publicado desde 1978, inicialmente em Manaus, tem as impressões genéticas de Dom Pedro.
O redator dessas linhas, à época frade franciscano da T.O.R., ainda ajudou a rodar em mimeógrafo elétrico (dispositivo avançado naqueles tempos) algumas edições do Porantim na Paróquia de São Jorge, em Manaus.
06. Dom Pedro fez-se pobre com os pobres. Não morava em palácio episcopal, mas em casa simples, sempre de portas abertas ao povo. Sua pátria era São Félix do Araguaia – MT, assim como a pequena e pouco afamada Nazaré, na Galileia, foi a pátria de origem da missão de Jesus, o Nazareno.
Aos 92 anos e muito debilitado, Dom Pedro permaneceu até as últimas forças em sua São Félix, quando, por fim, no início desse agosto de 2020, foi transferido para a cidade de Batatais, em São Paulo, aos cuidados da Congregação Claretiana, à qual pertencia.
Ali terminou seus dias, em 08 de agosto de 2020. Dom Pedro: coração generoso, resistência de pedra, sabedoria poética, profeta dos pobres, palavra fértil como a árvore verdejante plantada nas margens das águas correntes.
Bispo-Poeta, seus cânticos eram sempre gritos de libertação. Dele nasceram dois clássicos da liturgia libertadora: A Missa da Terra sem males, como um canto dos povos originários, e A Missa dos Quilombos, para celebrar a memória afro militante da população negra brasileira.
07. Os anos de 1970, 1980, 1990 e início dos anos 2000 da Igreja no Brasil seguirão definitivamente marcados pela presença irredenta desse bispo poeta e militante, que tanto incômodo causou ao reacionarismo, tanto da parte da cúpula e de setores da Igreja, quanto da burguesia democida e servil à ordem do grande capital.
Dom Pedro fez da teologia um saber com os pés no chão. Sua história está ligada à luta de dois mártires da Teologia da Libertação: o padre João Bosco Penido Burnier, assassinado em 1976, e o padre Josimo Tavares, assassinado em 1986. Dom Pedro Casaldáliga, desde sua Prelazia de São Félix do Araguaia, atravessada pelas forças do atraso, sob as agressões continuadas dos senhores da terra, já inscreveu de forma definitiva, com as letras da dignidade e da causa do Reino de Justiça e Paz, sua presença no Grande Memorial da Vida.
Mesmo que a cúpula do Vaticano – e dela preservo o Papa Francisco – venha a se opor à sua merecida canonização, Pedro já foi proclamado Santo e Mártir, desde 08 de agosto de 2020, pelos pobres e oprimidos do Brasil e da América Latina. Dom Pedro Casaldáliga, PRESENTE!
*José Alcimar de Oliveira, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe, em Manaus-AM, 10 de agosto de 2020.