
O diretor exonerado do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o físico Ricardo Galvão, declarou, que o discurso que a ZFM (Zona Franca de Manaus) mantém a floresta amazônica em pé é uma falácia. Para Galvão, há equívocos nos discursos e nas polícias públicas defendidos pelo Governo Federal e pelos políticos locais sobre o desenvolvimento da região.
A declaração de Galvão foi feita à Coluna de Política da Rádio Band News Difusora e levada ao ar às 8h20 desta quarta-feira, dia 23, na 93.7.
Galvão participou nesta terça-feira, dia 22, de uma roda de conversa sobre “Ciência e Monitoramento da Amazônia” promovida pela Agência Amazônia Real, no espaço do Musa no Largo São Sebastião, Centro de Manaus .
Ativista, profissionais da área do meio ambiente, jornalistas, estudantes e professores universitários, além de outros cientistas, participaram do debate realizado entre as 15h e 17h desta terça.
Galvão foi exonerado em agosto, após se negar a ceder às pressões do presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), para “segurar” os dados do desmatamento da Amazônia monitorados pelo Inpe. A exoneração repercutiu internacionalmente e foi um dos pontos de impulsão para que o desmatamento na Amazônia no atual governo se tornasse pauta mundial.
Confira a entrevista:
“Não há desenvolvimento sustentável que atenda toda sociedade de uma maneira digna sem ciência e tecnologia”.
Rosiene Carvalho (RC): Qual a importância da ciência para a Amazônia?
Ricardo Galvão: O assunto principal que nós devemos nos preocupar é que não há desenvolvimento sustentável que atenda toda sociedade de uma maneira digna sem ciência e tecnologia. Não adianta o governo falar em projetos que usem somente ideias capitalistas, que explorem o meio ambiente, sem levar em conta o avanço em ciência e tecnologia. Hoje em dia, há vários modelos que mostram não só como controlar o meio ambiente, mas como explorar, no caso da Amazônia, a biodiversidade de uma forma sustentável. Infelizmente, esse governo tem virado as costas para esse desenvolvimento científico, desenvolvido inclusive aqui na Amazônia, no Inpa, no Instituto Mamirauá, no Museu Goeld (em Belém) e outras instituições. É muito importante vir, falar com os jovens, com a sociedade para que eles possam exigir que seus político usem dados científicos para tratar de políticas públicas.
“É uma falácia dizer que a ZFM ajudou a manter a floresta em pé. Os grandes desmatadores ilegais na Amazônia são as grandes empresas. Não é o coitadinho que vai desmatar”.
RC: Há um discurso de que o modelo ZFM (Zona Franca de Manaus) garante a floresta em pé. O senhor concorda?
Ricardo Galvão: A questão é um pouco complexa. A ZFM é um modelo desenvolvido há cerca de 50 anos. Essa questão do aquecimento global, do meio ambiente não era uma pauta muito forte. Se falava, mas não era muito forte. Não há dúvidas que, oferecendo oportunidades de emprego, se atrai pessoas que, talvez, estariam desmatando. Mas é uma falácia dizer que ela ajudou a manter a floresta em pé. Os grandes desmatadores ilegais na Amazônia são as grandes empresas. Não é o coitadinho que vai desmatar. Eu estive andando em alguns lugares desmatados na Amazônia. É incrível. As empresas têm maquinários, motosserras, grandes investimentos. Esse pessoal que está desmatando para ganhar dinheiro com capitalismo selvagem não são aqueles que estão trabalhando na ZFM. Esse modelo da ZFM tem que ser revisto.
“Esse modelo da ZFM tem que ser revisto com foco no desenvolvimento sustentável da Amazônia”
“Todo esse discurso de desenvolvimento tem que ser revisto, principalmente, pelos políticos”
RC: A ZFM gera tributos e arrecadação para o Estado, repassado aos municípios.
Ricardo Galvão: É claro que ele (modelo ZFM) é muito importante. Creio que 90% da ordem das receitas do Amazonas venham das atividades da ZFM. Então, tem que ser planejado com muito cuidado para que seja explorada agora uma ZFM explorando a biodiversidade da Amazônia. Por exemplo, temos o caso do açaí que nós exportamos muito. Grande parte dos produtos de açaí é feito no Vale do Silício, nos EUA, e no Japão. São produtos que nós poderíamos ter investido aqui para que empresas, sem pagar muitos impostos, pudessem desenvolver aqui e não lá fora. Esse modelo da ZFM tem que ser revisto com foco no desenvolvimento sustentável da Amazônia.
RC: Então, o senhor acha que os discursos sobre o desenvolvimento da região são equivocados, tanto por parte do Governo Federal quanto dos políticos da região?
Ricardo Galvão: Veja, por exemplo, o grande arco do desmatamento que nós vemos agora está no sul do Pará e no sul do Amazonas. Esse pessoal não é afetado pela ZFM. Não é gente que está lá desmatando e viria trabalhar aqui. Todo esse discurso de desenvolvimento tem que ser revisto, principalmente, pelos políticos. E pela sociedade. A sociedade tem que se conscientizar que a manutenção da floresta é muito importante. E que eles têm que exigir dos políticos que esses tenham políticas públicas que levem isso em consideração.
RC: Como cientistas, ciência, jornalistas, políticos de oposição devem resistir a este momento de tentativa de desconstrução das vozes contrárias e de prevalência apenas do discurso governista, na sua opinião?
Ricardo Galvão: Essa resistência tem várias facetas. Uma é a comunidade científica começar a aprender a trabalhar melhor as redes sociais para responder às críticas. As redes sociais, no cenário atual que vivemos, têm uma força muito grande. Chega a ter uma força maior até que os periódicos. É muito importante saber trabalhar isso. E a sociedade precisa se conscientizar que não pode largar mais essas coisas com os políticos. Uma coisa que tenho levantado muito fortemente é que a reação da comunidade científica, diante da crítica, não pode deixar que seus olhos turvem pela ideologia política ou partidária daqueles que estão no comando. Mesmo que sejam pessoas nas quais aquele cidadão votou. Se tiver políticas erradas, do ponto de vista ambiental, ele tem que lutar contra.
Rosiene Carvalho: Mesmo estando num cargo comissionado, considerado de confiança…
Ricardo Galvão: Mesmo estando num cargo comissionado. Foi um sacrifício muito grande para mim, claro. Fiquei triste, mas eu entendi que, diante daquele ataque, não havia como voltar atrás e seria muito importante, como marco para a sociedade, de como se deve comportar.
“Embora o governo tenha a defesa da soberania nacional e isso é verdade. Mas a soberania vem com responsabilidade. Você tem que ser responsável sobre como você usa o que possui”.
RC: As pessoas precisam compreender que o que se está em risco é algo muito maior que um cargo público?
Ricardo Galvão: Sim, mais do que um cargo. Você veja, toda a umidade do Brasil, todo o regime pluviométrico, toda a nossa produção agrícola, da América do Sul, depende da Amazônia. Uma árvore na Amazônia, uma copa entre 10 a 20 metros bombeia para a atmosfera 60 mil litros de água por dia. Então, a Amazônia é responsável por cerca de 20% de toda a umidade da atmosfera terrestre. Ela é importantíssima para o País. No dia em que perdermos a Amazônia, vamos perder a nossa agricultura. O aquecimento global é seríssimo porque ele é muito democrático. Se aumentar a temperatura em dois três graus, na média, todos vamos morrer. Filhos e netos. Não interessa se é europeu ou nós. Então, embora o governo tenha a defesa da soberania nacional e isso é verdade. Mas a soberania vem com responsabilidade. Você tem que ser responsável sobre como você usa o que possui.
“O governo está mais preocupado”
Rosiene Carvalho: A reação da comunidade científica, neste embate sobre os dados do desmatamento, este ano, mudou rumos?
Ricardo Galvão: Olha, pelo menos parou o governo e mudou o discurso do ministro do Meio Ambiente (Ricardo Sales). Não sei se as ações. Mas o governo está realmente muito mais preocupado. Não só a reação da comunidade científica, mas da sociedade como um todo. Tenho sido parado no metrô, nas ruas. Há questão de umas três semana, no metrô de São Paulo, uma senhora de uns 60 anos veio na minha direção, me abordou. Ela estava com celular e eu pensei que ia tirar fotografia. Ela disse: professor, para mim, a Amazônia era um matinho no norte do País e não tinha nada a ver com a minha vida. O que o senhor fez, me fez abrir os olhos, despertar. Quero informar que sou ativista, agora, neste assunto tanto no meu trabalho, quanto na minha paróquia. Ela montou grupos e está atuando nas redes sociais para contestar essas pessoas que atacam o (debate sobre) aquecimento global e são contra o monitoramento do desmatamento na Amazônia. Isso foi muito emocionante para mim. Uma senhora simples na sociedade. Essa reação, eu creio, foi muito importante também para despertar dos civis.
“A minha resposta muito contundente, parte foi realmente pensada. Colocou o Inpe numa posição que não vai ser fácil o governo contra-atacar e proibir o Inpe de publicar os dados”
RC: Qual sua opinião sobre o futuro do Inpe?
Ricardo Galvão: Eu acho que resiste. Aliás, a minha resposta muito contundente, parte foi realmente pensada. Colocou o Inpe numa posição que não vai ser fácil o governo contra-atacar e proibir o Inpe de publicar os dados. O mundo inteiro está olhando os dados sobre a Amazônia. Agência espacial europeia, os chineses. Agora mesmo, em novembro, vou num evento na França e outro na Universidade de Columbia (EUA) tratar sobre a questão do desmatamento na Amazônia. Fui chamado pelo Ministério Público Federal em São Paulo. Então, a reação foi muito grande. Não haverá como o governo impedir a publicação dos dados do Inpe.
Foto: Ana Oliveira