* Por Ygor Cavalcante
Elis foi à Europa, em finais de 1970, cantar os problemas do Brasil, o Sinal Fechado, o “amor malfeito depressa” e as agruras dos “mundos do trabalho” em Deus Lhe Pague, de Chico Buarque, e, deste mesmo compositor, “Maravilha”, para louvar a revolução cubana; “Mulheres de Atenas”, sobre a situação da mulher, análise estendida em Meninas da Cidade, de Fátima Guedes, de quem também gravou a denúncia de assassinatos do povo negro e pobre pela polícia já perversa e militarizada dos anos de “chumbo”, em Onze Fitas, mortes invisíveis nos jornais – “a verdade não rima”, gritava com toda a força no show de 1980, Saudades do Brasil;
Elis cantou a fé popular em Romaria, de Renato Teixeira e seu rock rural; fez crítica ecológica, em O Boto, de Tom Jobim; louvou à cultura operária em O Rancho da Goiabada, dos comunistas João Bosco e Aldir Blanc, também compositores de O Mestre Sala dos Mares, que elogiava as “lutas inglórias” da nossa história, e da canção O Bêbado e a Equilibrista, sucesso do espetáculo Essa Mulher (gravado em 1979), também chamada de o “hino da Anistia” – parte da luta democrática pelo retorno dos exilados políticos, acusados de subversão e de ameaça à segurança nacional. Fé e Esperança num país democrático.
Quando Betinho, irmão do Henfil, chegou do exílio e se dirigiu direto para o Teatro Anhembi, mais de quatro mil pessoas lotavam o lugar, quando Elis decidiu repetir a para que o recém chegado pudesse ouvir – com a rouquidão de uma voz exausta – a canção da “esperança equilibrista”. “Ele voltou, a gente conseguiu!”
Imaginem o que foi para essa mulher comprometida com a democracia popular, que fazia do seu ofício um instrumento de luta e de anunciação de sua crença em um futuro melhor; imaginem o que foi ela ver, nos jornais, na tv, no rádio, o retorno de figuras como Jânio Quadros, cotado para ser governador do estado mais importante do país?!
O final dos anos de 1980 foram cruciais para um giro de perspectiva. “Oh minha senhora, o que tá fazendo na frente da televisão que não aprende? 1981, o preço que tá a gasolina?!” – vociferou contra a queixa de uma telespectadora durante entrevista em Porto Alegre.
Elis estava ressentida: parte dos brasileiros estava mais incomodado com a “postura” da cantora ao se sentar do que refletindo criticamente sobre problemas sociais mais graves: destruição da escola pública; aumento dos preços de combustível e alimentos; inflação exorbitante; laboratórios fazendo testes de contraceptivos, sem consentimento prévio, em mulheres operárias; enfim, os brasileiros estavam “todos no mesmo barco furado remando contra a maré”, concluía, citando Rita Lee.
Sentia que, apesar do fim da censura do regime militar, havia em andamento a formação de um novo regime de visibilidade no mercado, um tipo mais sutil de censura aos artistas e ao povo, sujeitados ao poder dos indicadores de venda, das metas, das pesquisas de satisfação, enfim, Elis estava atenta aos perigos da linguagem neoliberal para o operariado. Identificava-se com os marginais da música paulista e denunciava o estreitamento ideológico contra o qual o músico brasileiro deveria se confrontar, pois, os espaços de divulgação de novas performances e ideias restringiam-se aos “círculos dos elefantinhos” – um segurando o rabo do outro para proteger o corpo das inseguranças da precariedade.
* Ygor Cavalcante é historiador e professor do Ifam
Elis e a Causa de uma vida (Parte 1)
Fazia escuro, mas Elis cantava! (Parte 2)