Estado se omitiu em criar leitos no Delphina Aziz e desorganizou o sistema de saúde, afirma promotora

Foto: Promotora silvana Nobre (Divulgação/MO-AM

A promotora da Promotoria de Justiça Especializada na Defesa dos Direitos Humanos e Saúde Pública, Silvana Nobre, declarou que o Governo do Amazonas desorganizou o sistema de saúde ao se omitir em criar leitos no Hospital Delphina Aziz, não usar leitos de UTI disponíveis na rede SUS e concentrar esforços na criação de um hospital que foi inaugurado sem conclusão e sem oferecer aos pacientes infectados na pandemia o que eles precisam: leitos de UTI e atendimento digno.

“Esse fluxo foi estabelecido, aliás, a falta de fluxo foi estabelecida em razão do estado ter se omitido em abrir leitos clínicos no Delphina, que era onde ia se dar a concentração de pacientes covid. Na medida em que o estado não abriu leitos lá, as pessoas tiveram que ir para os prontos-socorros (…) Os fluxos dos prontos-socorros não foram estruturados para esta situação”, declarou.

Silvana Nobre atua há anos no MP-AM (Ministério Público do Estado do Amazonas) na área da saúde e tem conhecimento técnico do setor. Com perfil independente, responsável e discreto, a promotora já esteve à frente de ações que questionaram contratos a ações suspeitas em praticamente todos os governos que antecederam Wilson Lima.

No domingo, dia 19, integrou uma equipe de inspeção do MP-AM ao Hospital de Retaguarda da Nilton Lins. Dentre os presentes, Silvana Nobre era a mais experiente e preparada para lidar com os dados do setor.

Em entrevista exclusiva ao blog, a promotora apontou questionamentos nas decisões da condução da gestão do enfrentamento da pandemia e afirmou que ações equivocadas e omissões do governo acentuaram os problemas na rede estadual.

A inspeção foi feita na semana em que explodiram os números de busca de atendimentos e vídeos do drama dos pacientes nos hospitais João Lúcio, 28 de Agosto e SPAs repercutiram na mídia nacional. Paralelo a isso, o governador Wilson Lima anunciou que o seu gabinete passou a funcionar temporariamente na Nilton Lins para agilizar a criação do hospital de retaguarda.

O governo recebeu críticas por não dar urgência na ampliação de vagas na estrutura do Delphina Aziz e não aproveitar o HUGV e Beneficente Portuguesa, que, segundo a promotora, contam com leitos de UTI.

Enquanto, o Nilton Lins iniciou operação com 50 leitos clínicos, segundo o governo, o Delphina conta com mais de 200 leitos clínicos prontos. E isso desde o início da pandemia, que não são usados porque não foram contratados pelo governo, de acordo com a promotora.

Enquanto isso, os leitos de UTI do estado lotaram e as mortes em unidades sem este erviço aumentaram. Pacientes relatam, em matérias de veículos nacionais, que voltam para casa sem atendimento e profissionais da saúde afirma que leitos estão sendo improvisados nas outras unidades.

“Acho que o estado tem que adotar providências muito urgentes e não tem que ficar somente colocando no Hospital Nilton Lins todo o seu esforço, porque temos uma rede que pode receber pacientes. (…) Temos que dar valor assim que ele chega para colocá-lo num lugar digno de receber assistência. Não em cadeiras, nem macas.”

A fala da promotora repete a constatação de profissionais da saúde, que estão na linha de frente do atendimento aos pacientes com covid19, e reflete o caos que se reproduziu em vídeos sobre os atendimentos em SPAs e hospitais desde a quinta-feira, dia 16. Faltam recursos humanos, equipamentos e o atendimento foi precarizado. Para a promotora, “falta organização” na rede.

“O funcionamento da Nilton Lins era acessório. Todo o principal tinha que estar funcionando e não está. (..) As únicas unidades que não estavam preparadas para o covid, que são os prontos-socorros, têm sido as unidades que recebem estes pacientes”.

Silvana Nobre também destacou necessidade de transparência em todos os atos e reprovou a espera pelas vagas do hospital de retaguarda que não tinha data para ser entregue e, quando inaugurado, não foi colocado para funcionar com a estrutura conclusa. A promotora defende que o governo passe a usar a estrutura já disponível para que os pacientes recebam atendimento digno.

“Tudo no covid a gente conta em horas. Então, não daria jamais para a gente ficar dependente de uma obra que seria concluída no dia que ninguém sabia qual era. E que mesmo ontem (sábado) como indicada como concluída, não se concluiu. (…) O problema é leito de UTI que a Nilton Lins não trouxe.”, disse.

Em nota, o governo disse que o hospital retaguarda foi aberto em função da urgência de leitos, que mantém todos os esforços para ampliar a oferta de leitos tanto no Hospital e Pronto Socorro Delphina Aziz.

Leia a entrevista da promotora:

Rosiene Carvalho (RC): Qual resultado do que encontraram no Hospital de Retaguarda da Nilton Lins? A senhora e a PGJ, Leda Mara, disseram que a inauguração foi simbólica e não há estrutura para atendimento dos pacientes.

Silvana Nobre: Sim. Vimos lá que máscara N-45 só tinham 15 unidades. Na verdade, o hospital estava sendo arrumado. Ainda. Não estava pronto para recepcionar pacientes. Teve um paciente, que talvez por erro, vindo de Manacapuru, foi encaminhado para lá. Mas esse paciente não ficou. O hospital não está preparado para receber paciente covid.

“Não tem UTI funcionando. Não tem aquela totalidade de leitos funcionando. O tanto de leitos que eles trabalharam neste período todo para aprontar e o que sempre colocamos: esses leitos clínicos existem na rede. Existe este mesmo tipo de leito no Hospital Delphina Aziz, que não estão ativados.”

RC: Na hora em que a inspeção do MP ocorria, chegou paciente e o hospital não pode internar?

Silvana Nobre: É. Não pode receber porque a UTI não estava funcionando. Era um paciente para UTI. Não tem UTI funcionando. Não tem aquela totalidade de leitos funcionando. O tanto de leitos que eles trabalharam neste período todo para aprontar e o que sempre colocamos: esses leitos clínicos existem na rede. Existe este mesmo tipo de leito no Hospital Delphina Aziz, que não estão ativados.

RC: Numa quantidade maior que 66, o que foi anunciado pelo governo neste final de semana?

Silvana Nobre: Sim, temos ainda o Getúlio Vargas com muitos leitos clínicos. A Beneficente Portuguesa com muitos leitos clínicos. E os pacientes não covid que estão nos pronto-socorros podem ser encaminhados para o Getúlio Vargas e Beneficente, ambas unidade de saúde que trabalham com tabela SUS. Isso quer dizer que não se cobra um centavo a mais do que aquilo que o Governo Federal indica como preço por um leito.

“As únicas unidades que não estavam preparadas para o covid, que são os prontos-socorros têm sido as unidades que recebem estes pacientes. Praticamente. A rede está abarrotada de pacientes internados, inclusive em cadeiras e macas nos corredores e nós temos leitos clínicos na nossa cidade há muito tempo.”

RC: O governo tem convênio com essas unidades?

Silvana Nobre: O credenciamento de leitos para retaguarda, seja covid ou não covid, não foi feito. O planejamento do estado era para o Delphina. O Hospital Nilton Lins não entrou neste planejamento inicial. Era, assim, uma situação que, se piorasse, entraria como sobressalente ao planejamento principal. Então, há que se apurar esses fatos. As únicas unidades que não estavam preparadas para o covid, que são os prontos-socorros têm sido as unidades que recebem estes pacientes. Praticamente. A rede está abarrotada de pacientes internados, inclusive em cadeiras e macas nos corredores e nós temos leitos clínicos na nossa cidade há muito tempo. Não é dessa semana, há muitos tempos estão prontos.

O funcionamento da Nilton Lins era acessório. Todo o principal tinha que estar funcionando e não está.

RC: Criar leitos na Nilton Lins foi um problema?

Silvana Nobre: O problema não pode ser identificado hoje nesse funcionamento da Nilton Lins. O funcionamento da Nilton Lins era acessório. Todo o principal tinha que estar funcionando e não está.

“Esse fluxo foi estabelecido, aliás, a falta de fluxo foi estabelecida em razão do estado ter se omitido em abrir leitos clínicos no Delphina, que era onde ia se dar a concentração de pacientes covid. Na medida em que o estado não abriu leitos lá, as pessoas tiveram que ir para os prontos-socorros (…) Os fluxos dos prontos-socorros não foram estruturados para esta situação”

“Falta de uma organização na rede. Nós não sabemos até hoje a questão do Delphina não ter aberto todos os leitos que deveria. Aí, há indicação que faltariam recursos humanos. Mas, veja, o estado arranjou o recurso humano para o Hospital Nilton Lins”.

 

RC: Médicos têm falado para nós jornalistas que consideram errada a medida de fechar a entrada de pacientes covid no Delphina e pulverizar na rede em que há pacientes de grupo de risco sendo tratados. O que se pode fazer, neste momento, para tentar corrigir, se este fluxo de fato é equivocado?

Silvana Nobre: Esse fluxo foi estabelecido, aliás, a falta de fluxo foi estabelecida em razão do estado ter se omitido em abrir leitos clínicos no Delphina, que era onde ia se dar a concentração de pacientes covid. Na medida em que o estado não abriu leitos lá, as pessoas tiveram que ir para os prontos-socorros. Nos prontos-socorros, a porta é aberta. Então, o mundo todo continua a se movimentar enquanto os pacientes covid estão chegando. Os fluxos dos prontos-socorros não foram estruturados para esta situação. Então, você viu no 28 de Agosto, numa mesma enfermaria, dividas em lado esquerdo e direito, pacientes covid e não covid, sem qualquer barreira física. Esses pacientes automaticamente se contaminam. Os pacientes graves que chegam nestas unidades nos prontos-socorros da cardio e vasculares estão entrando ainda no Francisca Mendes contaminados e estão contaminando outras unidades e pacientes muito graves. Isso por falta de uma organização na rede. Nós não sabemos até hoje a questão do Delphina não ter aberto todos os leitos que deveria. Aí, há indicação que faltariam recursos humanos. Mas, veja, o estado arranjou o recurso humano para o Hospital Nilton Lins.  

RC: Há entrave para ampliar leitos no Delphina por ser um hospital gerido por uma OS (Organização Social)?

Silvana Nobre: O problema é que o contrato da OS não estava para este momento excepcional e o estado não refez. Não entendeu que havia necessidade, então, de refazer um contrato para uma situação extraordinária.

RC: Podia ser feito no curso desta pandemia?

Silvana Nobre: Quando o estado indicou, no planejamento, os leitos do Delphina com ampliação, nós entendemos que lá o estado iria refazer esta cláusula contratual para atender a demanda crescente. Só que isso não ocorreu. Não sabemos o que aconteceu porque todos os fatos não são públicos.

“O estado tem que parar de excluir unidade de saúde da rede e trabalhar com elas, antes de tudo. O Getúlio tem UTI e os pacientes precisam.  As UTIS da Nilton Lins não estão funcionando. E são pouquíssimas.”

RC: O que é possível fazer agora, neste momento da pandemia, início do pico de registros, para que a população tenha um melhor atendimento na rede?

Silvana Nobre: O estado tem que parar de excluir unidade de saúde da rede e trabalhar com elas, antes de tudo. Precisa mandar pacientes não covid para o Getúlio Vargas. Pacientes covid ou não covid para Beneficente Portuguesa. O Getúlio tem UTI e os pacientes precisam.  As UTIS da Nilton Lins não estão funcionando. E são pouquíssimas. Nenhum estava funcionando (durante a inspeção). Nenhum.

“Temos um nível de ocupação de UTI maior que todo Brasil. Então, tem algo que tem que ser feito de forma muito urgente.”

RC: Qual a condição dos outros hospitais, em que vimos cenas terríveis em vídeos divulgados por pacientes e médicos?

Silvana Nobre: O nível de contaminação é preocupante. Vivemos uma subnotificação de casos, isso é verdadeiro. Inclusive, foi um dos pedidos que fizemos. Para os dados serem publicados, dos suspeitos. Temos um número muito grande de suspeitos descartados. Temos descarte também de pessoas que são avaliadas por médicos e eles indicam ser covid, mesmo não testados, e esse número acaba não compondo este quadro. E olha que estamos com uma alta taxa de contaminação. Temos um nível de ocupação de UTI maior que todo Brasil. Então, tem algo que tem que ser feito de forma muito urgente.

“Tudo no covid a gente conta em horas. Então, não daria jamais para a gente ficar dependente de uma obra que seria concluída no dia que ninguém sabia qual era. E que mesmo ontem como indicada como concluída, não se concluiu. (…) O problema é leito de UTI que a Nilton Lins não trouxe.”

RC: Em que tempo?

Silvana Nobre: Essa questão da UTI e leitos clínicos é para ontem. Tudo no covid a gente conta em horas. As decisões têm que ser adotadas para tratar os pacientes e dar esta assistência ampla. Então, não daria jamais para a gente ficar dependente de uma obra que seria concluída no dia que ninguém sabia qual era. E que mesmo ontem como indicada como concluída, não se concluiu. A questão de estrutura, temos grandes estruturas em nosso estado. Temos no Delphina uma grande estrutura. Temos o Getúlio Vargas com uma grande estrutura. Questão de estrutura não é o problema. O problema é leito de UTI que a Nilton Lins não trouxe.

“Acho que o estado tem que adotar providências muito urgentes e não tem que ficar somente colocando no Hospital Nilton Lins todo o seu esforço, porque temos uma rede que pode receber pacientes. (…) Temos que dar valor assim que ele chega para coloca-lo num lugar digno de receber assistência. Não em cadeiras, nem macas.”

RC: Essas informações do Datasus que o Amazonas tem cerca de 800 respiradores e a Susam dá informações, desde o início da pandemia, que eram cerca de 400, somando público e privado. Onde estão esses outros 400 que o Datasus aponta?

Silvana Nobre: Eu acho que o estado tem que explicar isso aí. Os equipamentos são cadastrados no Datasus e quando são quebrados, eles devem ser retirados de lá. O fato é que o estado não alimenta essa base de dados com constância. Pode ter uma margem grande de aparelhos, inclusive, em nível de inservíveis. Mas isso é algo que tem que ser apurado. Acho que o estado tem que adotar providências muito urgentes e não tem que ficar somente colocando no Hospital Nilton Lins todo o seu esforço, porque temos uma rede que pode receber pacientes. Temos que dar valor a esses pacientes. Temos que dar valor assim que ele chega para colocá-lo num lugar digno de receber assistência. Não em cadeiras, nem macas.

RC: A senhora é uma das autoras do pedido de transparência para os dados da covid, que foi aceito pela Justiça Federal. O governo tem até quando para começar a cumprir?

Silvana Nobre: No portal da Controladoria do Estado foi criado um link. Algumas situações já estão pontuadas lá, mas está faltando alimentar. Falta a questão dos suspeitos, do nível de contaminação do estado, das contas estamos aguardando, porque tem bem pouquinha coisa, quase nada, e eles já criaram um link. Falta colocar as informações.

“Nós precisamos conhecer a realidade que estamos vivendo. Isso só com muita transparência. Mas é uma transparência constante. Não é posterior.”

“O Estado tem que entender que estamos numa pandemia e que a responsabilidade, ainda que seja maior do Executivo porque é ele afinal que decide como as politicas públicas que devem ser implementadas nesta fase, tem que ser compartilhadas com toda sociedade. Isso não pode ficar em poder de uma só pessoa.”

RC: Ninguém sabe dos leitos, o que tem e quem está morrendo sem ter acesso a que tipo de coisa. O detalhamento destes dados.

Silvana Nobre: Ninguém sabe. Quem sabe é a Susam e vai ter que colocar lá também. Inclusive, o número de profissionais de saúde que estão contaminados., afastados e mortos em razão do covid. A gente só sabe individualmente de um caso e outro. A indicação é que haja um número muito maior de profissionais contaminados. Uma boa parcela deles afastados em razão do risco que tem por causa da idade ou comorbidade. Mas esses dados tem que estar lá. Nós precisamos conhecer a realidade que estamos vivendo. Isso só com muita transparência. Mas é uma transparência constante. Não é posterior. Então, os contratos que estiverem estudados e trabalhados para serem celebrados para obter serviços ou bens já tem que estar lá. Nós, o controle social acima de tudo, e dos órgãos têm que estar concomitante. O Estado tem que entender que estamos numa pandemia e que a responsabilidade, ainda que seja maior do Executivo porque é ele afinal que decide como as politicas públicas que devem ser implementadas nesta fase, tem que ser compartilhadas com toda sociedade. Isso não pode ficar em poder de uma só pessoa.

“Nós precisamos saber como nossos pacientes serão tratados e como o estado está gastando o dinheiro indicado para cuidar desta pandemia. “

RC: O que é preciso saber?

Silvana Nobre: Até hoje não sabemos o que aconteceu de fevereiro para cá e que levou a não abertura de leitos clínicos do Hospital Delphina. Há uma fala aqui, uma fala ali, mas não há a indicação das providencia que o estado adotou para que esta situação tenha chegando onde chegou. Isso deve ser trabalhado. A questão da Nilton Lins, que aflorou com todo esse cenário ai de um negócio jurídico que até hoje não se sabe se tem contrato ou não. Isso também tem que estar muito transparente para toda sociedade. Nós precisamos saber como nossos pacientes serão tratados e como o estado está gastando o dinheiro indicado para cuidar desta pandemia.

RC: Essas ações atingem também as decisões que a prefeitura está tomando durante a pandemia? Tem um hospital de campanha, os próprios cemitérios e as condições dos servidores públicos que atuam lá.

Silvana Nobre: Sim. Com certeza. A transparência e a ação envolvem estado e município. É uma obrigação pela lei da pandemia.

RC: Promotora, eu agradeço a entrevista e gostaria de saber se há mais alguma coisa importante a ser informada que eu não tenha perguntado.

Silvana Nobre: Eu só tenho a agradecer aí pelo canal de informação e espero que o estado comece a cumprir a decisão judicial do juiz da 4ª Vara de Fazenda Pública, que determina a abertura de leitos no Getúlio Vargas, Delphina e Beneficente, independente do leito que for aberto no Hospital Nilton Lins.