“Estava completamente sobrecarregada! Fui obrigada a rever meu modo de vida”

*Grace Soares

Na minha vida, cedo assumi grandes responsabilidades. Ainda era uma criança quando pequenas rotinas domésticas precisaram ficar sob o meu comando. Isso porque numa casa onde uma mãe solo trabalha o dia inteiro fora, as duas filhas (sendo eu a mais velha) que a aguardam compreendem precocemente que seu papel na família e na sociedade é mais complexo do que aquele retratado nas novelas ou nas aulas no colégio.

A vida me obrigou a crescer mais rápido do que deveria. Nada foi imposto, na marra, por maldade. Em sua grande maioria, tratava-se de uma reação minha à necessidade de cumprir com um dos mais severos protocolos mundanos: dar conta de tudo!

Mulheres de todo o planeta estão presas a esta amarra social, que nos obriga a abrirmos mão de nossa sanidade mental em troca de uma cota magra de voz e vez nos espaços onde se consolidam as relações da sociedade: no mercado de trabalho, nos ambientes de lazer, cultura e entretenimento, na política etc.

A pandemia de COVID-19, deflagrada em 2020, maximizou os problemas enfrentados por nós mulheres, imersas nesse contexto de pressão constante para cumprir com um leque extenso e diversificado de obrigações.

Em meio ao caos generalizado, nos despedíamos do mundo que conhecíamos, mas a palavra de ordem ainda era dar conta.

Pessoalmente, foi uma experiência terrível acompanhar, à distância, a luta pela vida nos hospitais e, dentro de casa, no conforto do meu lar, perceber que o colapso físico e mental silenciosamente me tomava como vítima.

Mas como assim doente, se eu sou uma privilegiada do sistema? Tenho formação, renda própria, moradia, meus filhos estudam em boas escolas, todos possuem plano de saúde.

Home Office, estudos de doutoramento, aulas remotas (improvisadas) das crianças, quarentena, atividades domésticas, cuidados extremos com a limpeza de ambientes e alimentos e com a saúde. Todos os compromissos pré-pandemia mantidos na minha agenda, somados a novas atividades acumuladas durante a fase agravante do surto de COVID-19 e ao próprio medo de morrer me fizeram adoecer.

Estava completamente sobrecarregada! Fui obrigada a rever meu modo de vida urgentemente. E entender esse “meu jeito de ser” que tenta controlar tudo e que é tão centralizador. Algo nessa equação não estava calibrado de maneira correta.

Sobre a pandemia, eu pouco tinha controle. Não podia fabricar a vacina, nem depois acelerar a sua distribuição. Não cabia a mim expedir decretos que restringiam circulação (para evitar a proliferação do vírus). Nada disso dependia da minha influência. Porém, sobre o que eu suportava ou não aguentar dentro de casa, eu podia fazer algo a respeito. Mas como mudar?

Comumente, a sociedade compara as mulheres à personagem dos quadrinhos “Mulher Maravilha”, sinônimo de garra, bravura, obstinação, mas também de beleza, exuberância, doçura (alguns atributos um tanto quanto machistas).

Mais recentemente, ela sofreu uma repaginada (ou foi meu olhar que ficou mais apurado e acolhedor à causa feminista). Agora, quando a vejo no cinema, enxergo uma mulher que tenta resolver mais coisas do que é capaz, quase sempre dispensando ajuda, o que a torna frustrada; e seu papel, tua atuação, está sempre à prova da equipe. Por tudo isso, seria mais um estigma do que um selo de qualidade ser comparada com a super-heroína, então?

A questão é: se na ficção não está fácil para a Mulher Maravilha pedir ajuda, que dirá na realidade dos lares de Manaus, do Brasil.

O problema é que foi somente com ajuda médica que eu compreendi estar num quadro depressivo, cujo gatilho foi a sobrecarga advinda da vida pandêmica, mas suas raízes estão fincadas num histórico de episódios traumáticos vividos durante a infância e que antes me pareciam ou bobagens ou atestados, certificados de “garra”, “maturidade”.

Alguns deles me faziam orgulhosa. Ainda o fazem, mas hoje sei que paguei um preço alto pela superação de determinados obstáculos. Também compreendi que foi essa necessidade/obrigação que impus a mim de buscar o êxito, o controle a todo custo, que me tornou a Mulher Maravilha que ninguém mais aguenta ser: a que dá conta de tudo.

É hora de mudar. Escolher, priorizar e construir uma vida mais leve e de qualidade.

*Grace Soares é jornalista e professora do curso de Jornalismo da Ufam (Universidade Federal do Amazonas)