Eu tenho um sonho!

*Eliésio Marubo

Estamos aqui em mais uma das Casas que representam a democracia de vosso mundo. Eis que em nenhuma democracia mundo afora, na atualidade, a presença e a representatividade de um indígena nunca fizeram tanto sentido, como faz no dia de hoje minha presença neste lugar!

Primeiro, porque no meu país pudemos provar da parte negativa que a história americana produziu.

A literatura cuida de enumerar e indicar tais feitos. Longe de mim remoer o passado, mas não podemos deixar de considerar a história e todos os percalços que passamos para alcançar a evolução, sob a perspectiva humanística.

De toda maneira, não é uma história tão bonita, pois a expansão dos interesses comerciais americanos alimenta um sistema de ilegalidades praticadas junto a nossa gente, sobretudo na Amazônia.

Falo da exploração dos recursos ambientais. Mas não gostaria de falar tão somente da exploração de recursos naturais, com extração de ouro ilegalmente das terras indígenas por parte de empresas americanas, ou dos agrotóxicos produzidos aqui e importados por empresas brasileiras, entre tantas outras coisas nocivas ao meio ambiente no Brasil.

Sendo este um país cristão, não poderia deixar tocar em outro tema de grande repercussão entre meu povo. Falo do envio de muitas organizações missionárias que estupram nossa cultura, modificam nossa forma de se organizar em sociedade e impõem novas crenças que alteram nosso modo de viver e causam dependência de coisas e objetos fora de nosso mundo.

Mas como disse, não vou mencionar estas coisas, pois não há necessidade de remoer o passado. Todavia, é necessário que estas coisas parem de existir e impor muito sofrimento e dor à minha gente.

Segundo, rememoro uma parte da luta de cidadãos americanos por direitos fundamentais, em que, tal qual motivou-me a vinda neste lugar tão respeitável, outrora motivou aqueles bravos líderes políticos do passado americano a caminharem em uníssono, pedindo o fortalecimento das instituições, o fortalecimento dos dizeres constitucionais e a dívida que a sociedade possuía, a partir do reconhecimento de direitos oriundos da sagrada constituição americana.

Tão sagrada quanto a Constituição brasileira, que em seu corpo trás preciosas garantias aos povos indígenas brasileiros, sobretudo na proteção de direitos fundamentais, como o Direito a vida, a proteção à saúde, a proteção do Estado às pessoas na forma de autocuidado dos seus cidadãos.

Desejo este que me solidarizo, respeito e aceito! Mas não o faço simplesmente por reprodução discursiva. Faço porque acredito nos valores, nas instituições e acredito no Estado Democrático de Direito para elevar nosso respeito pela ordem democrática, pelas instituições, pelas autoridades constituídas.

Porém, esse conjunto de crença só faz sentido se analisarmos através da urgência do agora, da necessidade de proteção de meu povo. Só faz sentido se o conjunto de garantias constitucionais nos fossem concedidos de forma gratuita. Só faz sentido se não precisássemos vir até aqui e atuar politicamente para reverter e perceber alguma ação concreta por lá.

Nossa alma sofre quando temos que rememorar capítulos tristes pelos quais as sociedades já passaram, e faço estas reflexões para rememorarmos que não basta viver em um mundo ideal, há que se incluir as pessoas e os problemas reais sobre a mesa e juntos buscarmos solução.

No passado americano, alguém sob a sombra da estátua de um líder político de importância ao vosso país, proferiu um valoroso discurso humanista em que sobressaía-se a expectativa de proteção de direitos fundamentais. De de igual maneira, e com quase nenhuma importância para meu país, eu tenho andado pela biografia daquele americano, e tal qual tenho conclamado meus pares a refletir sobre os mesmos princípios.

Apesar de estar praticamente só nesta reflexão, tive que vir aqui nesta tribuna democrática para dar mensagem ao meu país e aos meus concidadãos, e aos políticos que se ensurdecem propositalmente: EU TENHO UM SONHO!

EU TENHO O SONHO em ver o a efetividade dos dizeres de que “ Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Em verdade, Dom e Bruno não tiveram a oportunidade de conhecer estes sagrados mandamentos na manhã do dia 05 de junho.

Os ianomamis não tiveram a chance de conhecer a inviolabilidade do direito à vida.

Os guardiões no Maranhão não sabem o significado da expressão a inviolabilidade da segurança, entre tantos casos de violações de direitos fundamentais no Brasil.

Em todo caso, o Vale do Javari é um reflexo da inexistência de todas estas vagas expressões, pois, temos muitos Doms e Brunos que lutam pela proteção do território indígena, pela proteção da natureza e pela garantia do direito a vida.

Eu tenho o sonho em ver estas palavras fora de um discurso estatal e com a certeza de que um dia poderemos viver em paz e felizes em nosso território, sem se preocupar com coisas vindas de outras culturas e que podem nos matar.

A proteção da terra indígena do Vale do Javari, a proteção dos defensores dos direitos humanos e a proteção das lideranças indígenas precisa ser um compromisso do Estado Brasileiro. A investigação sobre o brutal assassinato de Bruno e Dom, deve ser um compromisso do meu país com a verdade e com os dizeres que há pouco mencionei. Por enquanto, não passa de um sonho meu!

Eu tenho um sonho!

*Eliesio Marubo é procurador jurídico da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). O texto é a transcrição do discurso do indígena feito aos congressistas americanos, no dia 14 de julho de 2022 falando sobre as condições da região e o sonho de que os brutais assassinatos do indigenista Bruno Pereira e Dom Phillips não fiquem impunes. O discurso foi enviado por Eliésio Marubo ao blog esta semana.

“Autoridades sumiram e crime aumentou ainda mais”, afirma Eliésio Marubo, procurador jurídico da Univaja, sobre assassinatos de Bruno e Dom