* Por Ygor Cavalcante
Além das grandes emissoras televisivas, Elis cantava na periferia, em greve, em “canja” nos bares, fazia shows beneficentes, mas não cantava para patrão em eventos de operário. Segundo ela própria: Lula intitulava-a de “foda”. Eu concordo. Quis armar um circo-popular-show (seus amantes de direita a chamariam de empreendedora), mas a prefeitura de São Paulo censurou.
Foi parar no Teatro Bandeirantes encenar uma análise de sua carreira e, com um estandarte e referências à ditadura militar na América Latina, Elis cantou a força do rádio na sua infância, os sonhos de criança e de mulher em Fascinação (que, em diferentes apresentações, servirá de corte temporal e temático para lembrar aos seus ouvintes que, dentre os sonhos mais importantes, estava um sonho de Brasil, no centro do picadeiro).
Cantou as contradições sociais e econômicas de sua própria profissão, de músico brasileiro, competindo com a invasão do mercado internacional e do que ela chamava de “yê-yê-yê de péssima qualidade” (e sobrou até para o Elvis Presley, a quem ela dirige toda sua fúria em entrevista inédita até bem pouco tempo).
Elis não tinha problemas com música estrangeira, não era fascistóide, como sugeriram Nara Leão e Caetano Veloso, quando viram, da janela de algum apartamento, a marcha contra a guitarra elétrica liderada por Elis e que contava com o tenso e ambivalente Gilberto Gil.
Ela tinha desejos de universalidade, disse isso em entrevista de 1978, quando confessou se sentir muito mais emocionada com as músicas portuguesas, legado de sua família materna, do que ao ouvir a oficialidade da cultura gaúcha (que excluía, por exemplo, o repente, mais afeito à crítica social). Mas o universal aqui exigia a transformação das condições de vida do povo brasileiro.
Elis tinha problemas com o mercado de massas. Falou em Como nossos pais uma mensagem bem diferente daquela lembrada hoje, resultado de uma interpretação fetichista: nós abandonamos o sonho de mudar o mundo, pois, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.
Vestida de Dom Quixote, porta-bandeira-estandarte, Elis conclamava ao final do show Falso Brilhante: “e no entanto é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar e alegrar a cidade” – trecho da canção Marcha da quarta-feira de cinzas. A marcha que encerra os tempos de carnaval: acabou a farra, a catarse, a ciranda, e vem o dia seguinte: o trabalho deve continuar. Alegrar, leia-se, alertar.
Mais do que resistir, é preciso largar a “velha roupa colorida”, criticar o “quadro” fetichizado que nos mantêm apegados ao velho sonho de mudar o mundo ocupando ruas, reunindo gente jovem e sentindo nos cabelos os ventos da liberdade (a canção Trem Azul não lembra o clássico de Bob Dylan Blowin’in the Wind?). Estamos em casa, guardados por Deus, contando “vil metal”.
Por isso, na temporada seguinte a de Falso Brilhante, Elis começou seu novo show com a pujante Fascinação – como se emendasse o término de um e o início de outro – o que só pode ser visto como um acontecimento político verdadeiro: aquele gesto que altera, há um só tempo, o presente, o passado, e o futuro. “Os sonhos mais lindos, sonhei, de quimeras mil, um castelo ergui” – façamos o castelo! Era o que dizia o espetáculo Transversal do Tempo.
Nessa posição em que o tempo é transverso, podemos tocar Elis: olhar o presente do país desde uma perspectiva crítica comprometida com a luta dos trabalhadores do passado. Elis cantou a crítica radical de seus próprios sonhos, da menina e da artista.
Foi o que Elis fez em um show quase impossível para a época: gravação ao vivo de um álbum duplo com quase trinta canções e uns não sei quantos canais de captação de som. Ali, conclamava os colegas à crítica social radical. “A gente convoca uma assembleia e aparecem três, bicho, quer dizer, consciência de classe é uma coisa que pouca gente tem…” – em uma fala ressentida dias antes de falecer.
Lembro quando a “pimentinha” retrucou – quase analiticamente – a pergunta de um jornalista: “Elis, porque você levou para a Europa um show tão militante e pesado”; ao que ela respondeu: “Porque a Europa precisa saber que o Brasil não é só festa e carnaval – a gente tem problemas também” – denunciando de pronto o sujeito comprometido ideologicamente por detrás da imagem de neutralidade e de imparcialidade a que recorreu o repórter, e a violência dos que buscam o “equilíbrio” da crença de ser o povo brasileiro apenas açúcares, afetos e festas – éramos, e ainda somos, um país no qual trabalhadores são pagos para manejar tratores que destroem casebres pobres à despeito do destino miserável desses apartados sociais, subcidadãos, escravizados, no limite – como é denunciado em Saudosa Maloca, causa de muitas críticas à versão dada por Elis, que ganhou notas de lamento, poesia triste, beltings de desamparo, e choro sentido, ao final, com uma suspensão do arranjo em grave tensão.
A propósito, Adoniran Barbosa, autor da canção, amou a versão “militante”.
* Ygor Cavalcante é historiador e professor do Ifam
Elis e a Causa de uma vida (Parte 1)
Fantástico!!!!