Filosofia, ciência e pandemia

Imagem: site racismoambiental.net.br/

01. Pelo paradoxo que encerra, afinal ele está na origem do que hoje designamos como racionalidade instrumental, vem de Descartes a imagem conceito mais ecológica que já se fez da Filosofia: “a Filosofia é como uma árvore cujas raízes são a metafísica, o tronco é a Física, os ramos que daí saem são todas as outras Ciências”.

Jesuíta de formação e ao mesmo tempo crítico do ensino que recebeu numa época em que a Igreja tutelava todo o saber, da Filosofia às demais ciências, seguramente essa bela imagem conceito cartesiana tem sua origem nos primeiros versículos do Salmo 1, em que o salmista distingue o caminho seguido pelo ímpio (do ódio ao conhecimento) do caminho daquele que medita dia e noite na sabedoria cultivada pelo justo:

“Ele é como a árvore plantada na margem das águas correntes; dá fruto na época própria, sua folhagem não murchará jamais. Tudo o que empreende prospera”.

Preocupado em estabelecer um método seguro para o bom êxito da razão natural, o que não seria possível sob a tutela da razão revelada sobre a razão discursiva, Descartes pensava sobre o fio da navalha da fé e da razão. O percurso da razão natural à razão revelada já não podia assentar-se no que ele classificava de “inúteis humanidades” do decadente pensamento escolástico.

02. Não menos paradoxal, hoje, 383 anos depois de publicado o seu clássico Discurso do método, é ver a razão regredir ao estágio pré-cartesiano das “inúteis humanidades” sob a mesma gramática do ódio ao pensamento e do cultivo da ignorância promovida pela combinação didático-ideológica entre capitalismo e religião.

A gramática do capital converteu-se no mais poderoso filtro ideológico jamais pensado pela Teologia (não a da Prosperidade, vade retro!), pela Filosofia e pela Ciência. É estranho que no Brasil de 2020 seja quase revolucionário e subversivo recorrer a Descartes para fazer a defesa da Filosofia e da Ciência. É a prova de que sob a gramática do capital não há limite para o pior.

A gramática do capital prescinde de letramento. Sua eficiência é tal, sua filtragem é tão intensa, que os efeitos pervertidos de sua pedagogia são mais bem assimilados entre os letrados (do fundamental ao pós-doutorado) do que entre aqueles excluídos da formação escolar.

O capital revestiu a barbárie com máscaras civilizatórias. Benjamin já havia equacionado que todo monumento de civilização é monumento de barbárie.

03. Nesses tempos coronaviranos o abraço da morte, forma arredondada da chamada necropolítica, é menos aquele denunciado por Ortega y Gasset na Rebelião das massas, ao afirmar que a técnica contemporânea resulta da cópula (perfeita) entre capitalismo e ciência experimental, do que o que resulta da combinação entre capitalismo e religião.

É uma combinação a um só tempo parasitária e obscurantista. Parasita a capacidade cognitiva do sujeito e promove, pelo filtro da crença, a recepção acrítica e imediata de conteúdos obscurantistas.

Permanece atual a crítica do franciscano medieval Roger Bacon – um representante escolástico do período classificado por Descartes como submetido às “inúteis humanidades” – às chamadas “quatro fontes da ignorância”, dentre as quais ele discernia como mais perigosa a ignorância arrogante, fundada na ostentação do saber aparente: trata-se de “um animal particularmente feroz, que devora e destrói todas as razões”.

Descartes foi um leitor meio desatento de Bacon, o Roger.

04. Ao criticar a gramática greco-romana que até hoje estrutura nossa forma de pensar, e vista como suporte apolíneo da crença em Deus, Nietzsche tinha como foco de sua investida epistêmica o ideal socráticoplatônico da verdade.

A desmesurada vontade de verdade: “Receio que não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática”. A tradição do pensamento marxiano e marxista nos ensina que a regência da gramática foi expropriada pela religião do capital, que criou um problema habitacional para Deus.

Enquanto Deus escapa às pressas pela janela, Satanás, triunfante, entra pelo pórtico principal do templo e estabelece a mercantilização da vida e das coisas como a mais globalista das religiões.

É sob essa religião disciplinada pela gramática capitalista, mais universal que católica ou evangélica, que a Amazônia do século XXI, com a máxima anuência do Estado burguês, compulsoriamente se ajoelha.

05. O alcance e a eficiência da pedagogia do capital residem precisamente na capacidade de prescindir da institucionalidade escolar para disseminar sua “docência” indecente e reproduzir com alcance universal seu ethos destrutivo.

O capital mais do que se antecipar à escola, controla e impõe sua gramática desde a fundação até o projeto político e pedagógico de seu funcionamento. Enquanto pensamos em transformar a sociedade a partir da escola e nos consumimos na disputa pelo protagonismo do modelo mais progressista, imaginando que na sala de aula se desenha e se articula o avanço da consciência de classe, terminamos por abrir o flanco de outros espaços sociais ao degradado sociometabolismo do capital.

Como educar para a vida e para a emancipação do ser social sem emancipar a sociedade da exploração de classe e do jugo axiológico e desagregador sustentado pela pedagogia do capital?

06. É na pedagogia do capital e em sua gramática que se encontra a gênese remota e imediata da atual pandemia coronavirana. O velho Heráclito num de seus sábios e dialéticos fragmentos afirma que a natureza gosta de se esconder.

Marx, por sua vez, nos indica que sob o jugo da produção capitalista o valor-de-uso esconde o valor-de-troca e os dois escondem o valor-trabalho.

O coronavírus, e por caminhos definidos pelos padrões de produção e consumo capitalistas, tende igualmente a esconder as relações sociais de sua gênese biocida.

O capital por meio de seus agentes e dos dispositivos de manipulação ideológica, que promovem a mentira sob medida, envenena a consciência coletiva com a crença de que tudo é natural.

O ódio ao pensamento, ou a “aversão à teoria”, segundo Adorno, combinado ao fundamentalismo crédulo, fornecem ao capital a blindagem ideológica de que necessita para se reproduzir e se fortalecer a cada crise e dentro da crise da qual se nutre seu predatório e parasitário sistema sociometabólico.

07. Não existe capitalismo democrático. Em distintas formas, menos ou mais violentas, o sistema do capital é sempre autoritário. Como tem mil braços e mil olhos, o modo capitalista de produção convive e transita num espectro ideológico que recobre os extremos políticos, da esquerda à direita, normatizando-se no centro e quando necessário – o Brasil de 2020 é exemplar –, não transige em recorrer ao fascismo, neo ou vétero, para garantir sua reprodutibilidade.

Suas mãos podem parecer invisíveis e transformista sua gerência, mas é impossível ocultar a miséria real que decorre da insaciável sede de lucro, materializada nos corpos dos pobres sem direito a nome nem sepultamento digno, como vemos na mortandade serial que em 2020 transformou Manaus na capital necropolitana do Brasil, sob gerência do fascismo, ou da organização política e ideológica do ódio.

Do ventre biocida do capital nasce e se reproduz o ódio em sua forma de classe, de raça, de nação, de ódio religioso. Pensador maior de Deus ou da Natureza, que viveu sob permanente anátema, Espinosa assinala que “o ódio nunca pode ser bom” (odium nunquam potest esse bonum).

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, no dia 17 de maio do ano coronavirano de 2020.