Francisco de Assis, o lobo de Gubbio e Hobbes: ou do homem do capital como lobo do homem

Imagem: ciganosnaweb.net

* José Alcimar de Oliveira

01. Francisco de Assis (1182-1226), que não nasceu Francisco, mas Giovanni, filho de Pedro Bernadone, teve seu nome mudado para Francesco, que no italiano da época seria francesinho, talvez uma homenagem de seu pai, Pietro, à França, país que integrava suas atividades de rico comerciante de tecidos.

Quando Francisco nasceu, seu pai encontrava-se na França. Nasceu no interior da ascendente e próspera burguesia da cidade de Assis, na rica Itália Central. Não foi vítima, portanto, da miséria pensada por Gramsci, em seu texto inacabado, A questão meridional, em que problematiza a existência de dois países num mesmo país presidido pela autocracia capitalista.

Francisco de Assis, por sua origem de classe, escapou à miséria da Itália do Sul, àquela época ainda longe de ser unificada. Nascido em berço dourado, ainda desfrutou da boa vida dos jovens ricos de seu tempo. Com pouco mais de 20 anos entra em conflito com suas origens burguesas, rompe relações familiares com o pai e assume a pobreza evangélica como modo de vida e posição de classe.

          02. Letrado, Francisco tinha conhecimento dos movimentos de contestação que muitos jovens à época organizavam contra a hegemonia do regime da cristandade medieval. Logo percebeu e se inquietou com uma Igreja rica, cercada e mantida pela miséria em que vivia a maior parte da população da chamada Idade Média.

Francisco decide se fazer pobre com os pobres e por volta de 1206 estava ele cuidando dos leprosos na cidade de Gubbio, perto de Assis. No meu tempo de seminário menor franciscano, aqui em Manaus, década de 1970, por volta dos 20 anos, nos deslocávamos a cada domingo, pela manhã, até a Colônia Antônio Aleixo, para a celebração da missa com os nossos irmãos segregados pela lepra.

Naqueles anos, a propósito, em 1976, celebrávamos os 750 anos da morte daquele a quem chamávamos de Nosso Seráfico Pai Francisco. Com aqueles irmãos, em regime de segregação, moravam as Franciscanas Missionárias de Maria, as saudosas Irmãs FMM, religiosas brasileiras e de diversos países, como França, Espanha, Itália, Suíça.

          03. A Colônia Antônio Aleixo, em Manaus, fazia parte de nossa “questão meridional” ainda sem o estatuto teórico gramsciano. As ditas doenças tropicais não foram produzidas pela natureza. Menos ainda, como era difundido no Medievo, resultavam de castigo divino. Não tínhamos leitura nenhuma de Gramsci nem de outros teóricos críticos para perceber no capital, com suas estruturas de desigualdade, a origem dos dilaceramentos sociais.

Mas era viva a nossa identificação com o mundo dos pobres. Nosso deslocamento até a Colônia Antônio Aleixo dava-se por estrada de chão batido e a que hoje é a Zona Leste, a mais populosa de Manaus, tinha sua geografia marcada pela vastidão verde e aquática, com poucos e esparsos moradores. Marcados pelo ímpeto da juventude, tal como o Francisco medieval, os seminaristas íamos e voltávamos à e da Colônia Antônio Aleixo sem nenhum medo de contaminação.

Muitos de nossos colegas nos advertiam sobre o perigo do contato com aqueles irmãos. De nossa parte, o que restou na memória não foi o medo, mas a alegria de a cada domingo voltar à Colônia Antônio Aleixo e ser recebido com alegria por seus moradores e pelas Irmãs Franciscanas.

          04. Por minha condição de teólogo sem cátedra, ou mais afinado com a heterodoxia, que imagino tenha movido Jesus de Nazaré e Francisco de Assis, arrisco-me a considerar o Poverello medieval um gramsciano avant la lettre em seu esforço teológico de traduzir para os pobres e desde o mundo dos pobres o Evangelho como Boa Notícia.

O talvez mais renomado pesquisador e historiador do mundo medieval, ex-presidente da prestigiosa École de Hautes Études em Sciences Sociales, Jacques Le Goff, cujo discipulado historiográfico se deu com ninguém menos do que Fernand Braudel, numa fascinante biografia de São Francisco de Assis, atesta que “a novidade da mensagem de Francisco, a novidade de seu estilo de vida e de apostolado abalaram em primeiro lugar seus contemporâneos”.

O ímpeto transformador de Francisco de Assis, ainda que depois muito do que viveu e projetou tenha sido desidratado pela instituição, foi o de tentar revolucionar as estruturas da Igreja a partir de dentro. Bem ou mal, já havia de forma embrionária intuído o conceito hegeliano de Aufheben, que inclui os movimentos de afirmação, negação e superação.

          05. Ter-lhe-ia sido mais cômodo e funcional fundar uma Ordem segundo o modelo canônico da Igreja Medieval, com seus suntuosos mosteiros beneditinos. A aprovação pontifícia seria célere. Francisco optou por outro devir, radical e originário, porque para ele, como vai dizer depois o Mouro de Trier, agir radicalmente implica tomar as coisas pela raiz. Sem condenar a normalidade do vigente paradigma beneditino de vida religiosa, Francisco de Assis opta por escrever uma breve Regra de Vida inspirada na itinerância do Evangelho de Jesus de Nazaré.

Em 1209, mesmo que oralmente, e não sem inconfessável desconfiança papal, obteve a aprovação de seu projeto de vida pobre e itinerante pelo Papa Inocêncio III. Estava fundada a Ordem dos Frades Menores, OFM. Comparado a Comte, seu conceito de Ordem não teria a aprovação do fundador do positivismo, com seu lema “Ordem, Amor e Progresso”: amor por princípio, ordem como fundamento e o progresso por fim.

Em Francisco de Assis a Ordem (Ordo) implica introduzir desordem evangélica na velha ordem da cristandade medieval, muito bem instalada no sedentarismo dos grandes mosteiros. Os Frades Menores, no máximo, deveriam habitar tendas.

          06. Seria muito difícil, tenso mesmo, um diálogo entre Francisco de Assis e Thomas Hobbes. Francisco era habitado e movido de forma antecipada pelo conceito espinosista dos bons afetos, da alegria, da comunhão fraterna dos homens entre si e destes com a natureza.

Ao contrário do homem, lobo do homem – homo hominis lupus – base autoritária do Estado-Leviatã hobbesiano, preferia a solidariedade e a alegria ao egoísmo e ao medo. É célebre em Francisco o episódio do Lobo de Gubbio, pequena cidade perto de Assis, na região da Úmbria, cujos moradores, pastores e rebanhos viviam atormentados pelos ataques de um lobo feroz.

Presididos pelo medo, os eugubini, como são chamados os moradores de Gubbio, se organizaram com as armas de que dispunham para dar cabo do lobo. Conforme relato dos I Fioretti, Francisco tomou conhecimento do que ocorria e foi ter com o lobo – fratello lupo – e logrou um acordo de paz entre a besta cruel e os citadinos.

A única condição imposta para o êxito do acordo era que os habitantes da cidade se comprometessem a alimentar o lobo. Segundo os registros, o lobo ainda viveu por dois anos em Gubbio, e sempre bem alimentado, andava domesticamente de porta em porta, sem fazer mal a ninguém e sem que ninguém lho fizesse, nem mesmo os cães.

          07. Inspirado em Francisco de Assis, cuja festa celebramos nesse domingo, 04 de outubro de 2020, o Papa Francisco, o mais franciscano dentre os jesuítas, lança nesse dia a Carta Encíclica Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e a amizade social.

Igualmente inspirada no ideário de Francisco de Assis foi sua Carta Encíclica, de 2015, Laudato Si’, Louvado Sejas, sobre o cuidado da casa comum. No início do século XIII, antes da emergência da questão ambiental, Francisco de Assis já protagonizava uma forma de vida orientada pelo cuidado e relações de simbiose entre cultura e natureza, entre o ser social (dito humano), o ser orgânico (flora e fauna) e o ser inorgânico (ar, água e terra).

Tratava a todas e todos como irmãs e irmãos. Francisco de Assis não pode ser responsabilizado pelo que se fez depois do seu projeto. Se tivesse chegado à Amazônia indígena no tempo em que viveu, na virada decisiva do século XII para o século XIII, Francisco de Assis estaria entre aquelas e aqueles que logo estabeleceriam relações de empatia e de fraternidade com os povos originários da Grande Amazônia.

São Francisco é o mais universal dos santos, de Assis, na Itália, de Canindé, no Ceará ou de Anamã, no Amazonas. Junto com Santo Antônio, está entre os santos mais populares do povo brasileiro. Talvez por ser franciscano, Santo Antônio é único santo igualmente popular e Doutor da Igreja. Uma belíssima exceção. São Francisco, que com ele fraternalmente conviveu, o chamava de “meu bispo”.

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho do cruzamento dos rios Solimões, em Manacapuru, AM, e Jaguaribe, em Jaguaruana, CE. Aos 04 de outubro do ano coronavirano de 2020.