“Fui desafiada a enxugar as lágrimas, conter minha dor e consolar quem precisava de apoio”

Zeila Marcia Lima Cardoso *

O cenário pandémico no Brasil em decorrência da covid-19 revelou muito mais do que as fragilidades no sistema de saúde da nosso país: evidenciou inúmeras fragilizações nas demais políticas públicas voltadas para a população.

Como gestora da Assistência Social do município de Parintins. Vi e senti de perto o medo, a angústia e o desespero da população que enfrentava de forma totalmente vulnerável o ataque de um inimigo invisível. Além desse inimigo extremamente mortal, a população carente deparava-se com o cenário assolador do desemprego, da miséria e da fome, nunca vivenciado em todos os tempos.

Na Secretaria de Assistência Social, sou responsável por desenvolver junto ao gestor municipal estratégias para garantir direitos sociais. Me senti muitas vezes triste e impotente diante de tão grande desafio. A cada dia era uma luta, uma batalha a ser vencida. Seguimos dia e noite tentando nos comunicar com a população e trazer as informações das ações de governo, entretanto, ao mesmo tempo, éramos cobrados em termos responsabilidade de não gerar aglomerações e nem de estabelecer o caos.

Implantamos sistema de atendimento remoto para atender ligações de solicitação de auxílio funeral, auxílio às grávidas com kit bebê e solicitação de cestas básicas, estes bastante solicitados. Era comum sermos acionados pelas autoridades em Saúde Judiciária, Ministério Público, Defensoria Pública, Conselho Tutelar, entidades religiosas, OSCs, todos solicitando apoio às famílias por perdas dos seus entes e por situações de vulnerabilidades.

Enfim, vozes e vozes, ligações e ligações, documentos de listagens de famílias carentes, uma verdadeira enxurrada de apelos que pareciam infindáveis e atormentadores. Essa sensação causou uma série de sequelas e vários relatos de colegas de pasta.

Não tínhamos tempo para chorar partidas dos nossos amigos, conterrâneos e nem de sofrer a partida dos nossos entes.

Lembro quando perdi meu pai no dia 24/05/2020, fui contaminada junto com minha mãe de 80 anos. Como muitos dos amazonenses, não pude sepultar meu pai que faleceu de COVID na chamada “primeira onda”, esse impedimento se deu por conta do decreto no nosso Estado que impedia o translado dos falecidos, os quais, quando precisavam de tratamentos fora do município ou do estado, se viessem a óbito não retornavam mais ao seu município de origem, eram sepultados na capital.

As famílias recebiam somente a triste informações e boletim médico.

Esse dia ficou e ficará marcado pra sempre na minha memória, porque fui desafiada a enxugar as lágrimas, conter a tristeza de minha alma que gritava com a dor da perda do meu pai, para atender e consolar outras famílias que nesse momento precisavam de apoio.

Nunca me arrependi por nada que abdiquei ou me anulei em prol dos outros, se tivesse que fazer faria novamente, afinal pra quem se permitiu a tirar algum ensinamento desse processo pandêmico, teve talvez a maior das oportunidades de receber o aprendizado. Ou seja, o de se tornar um ser humano melhor.

Aprendi a enfrentar o isolamento social, aprendi a lidar com as emoções, a gerenciar conflitos, a controlar o psicológico e respeitar as minhas próprias limitações quando necessárias. Hoje me sinto forte, valente e muito mais disposta a realizar o trabalho social com as famílias vulneráveis do meu amado município.

Temos superado obstáculos com restrição fiscal de repasses de recursos dos Entes federados. Tivemos um aumento expressivo da população carente por conseguinte das mazelares sociais, e mesmo assim criamos mecanismos de articulações com outros órgãos viabilizando respostas imediatas e assegurando atenção cuidado ao atendimento à população.

Estamos gradativamente fortalecendo a autonomia de famílias de baixa renda com inclusão produtiva e qualificação profissional, melhorando assim qualidade de suas vidas.

Encerro aqui, esse breve relato com os olhos marejados por um turbilhão de sentimentos que afloram a minha experiência de vida. Afinal, vivemos num país que nos faltam tantas coisas, só não nos pode faltar o otimismo, a esperança e a vontade de lutar para vencermos.

*Zeila Marcia Lima Cardoso é filósofa e gestora de assistência social no município de Parintins