Habermas e Paulo Freire: reflexões filosóficas à margem da academia em tempos coronaviranos

Foto: Habermas (centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br)
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*José Alcimar de Oliveira

01. Em recente entrevista ao Le Monde, em 11 de abril de 2020 [concedida a Nicolas Truong, traduzida por André Magnelli & Felipe Maia (UFJF), Fios do Tempo, 12 de abril de 2020], Habermas faz uma distinção entre o populismo “intelectual” de direita e o populismo “cotidiano” de direita. Segundo esse grande pensador, já nonagenário, lúcido e produtivo, “o populismo ‘intelectual’ de direita pode ter pretensões intelectuais, mas essas são apenas pretensões. Ele é, tão somente, um pensamento fraco. Por outro lado, o populismo ‘cotidiano’ de direita, que se estende muito além dos estratos empobrecidos e marginalizados da população, é uma realidade a ser levada a sério”. Não sou exatamente um leitor frequente de Habermas. Além disso, nem pela mais remota mediação do trabalho remoto haveria possibilidade dessas minhas inquietações filosóficas chegarem ao conhecimento do autor da mundialmente reconhecida Teoria do agir comunicativo, publicada em 1981 (com 1.558 páginas na edição brasileira), duzentos anos depois da primeira edição da Crítica da razão pura de Immanuel Kant. A essas duas grandes obras, a Crítica da razão pura e a Teoria do agir comunicativo, a filosofia deve o que se define pela segunda e terceira revolução copernicana.    

02. Na longa apresentação à edição brasileira da obra, Flávio Beno Siebeneichler faz “notar que a teoria do agir comunicativo submete o próprio método kantiano a uma espécie de guinada copernicana, pois sugere que, em vez de abordar o conhecimento segundo uma razão centrada em um sujeito singular ou numa consciência transcendental, devemos pensar que o sujeito, ao tentar conhecer algo, gira em torno de outros sujeitos, uma vez que o conhecimento racional resulta de um intercâmbio linguístico ente eles”. Noutras palavras, Habermas quebra o paradigma do sujeito solipsista da razão ocidental, em seu exitoso percurso de Descartes a Kant.

03. Mas o mesmo Habermas que considera a modernidade um “projeto inacabado” deixou inacabada uma ruptura que até hoje me anima a seguir a trilha marginal, classista, da heterodoxia filosófica. O sujeito do agir comunicativo habermasiano continua burguês, contente e altamente dialógico em seu mundo ideal de fala. Sua audição continua imune à fala classista do oprimido e do intelectual orgânico dos subalternizados.  Habermas faz igual sucesso lá em cima no norte rico e aqui em baixo no sul empobrecido. Boa parte de nossa intelectualidade ainda se inebria e mergulha fundo nas águas temperadas e anódinas do agir comunicativo.  Defensor da filosofia popular, Gramsci fez outro percurso e projetava pela via classista  uma Universidade igualmente Popular. Indagado numa ocasião se esse projeto não era um luxo, um desperdício, ele respondeu: aos proletários é um dever não serem ignorantes. Gramsci aprendera com Marx que “a teoria se converte em força material quando penetra nas massas”. Por seu caráter acadêmico, destinado prioritariamente ao sujeito social burguês, não vejo caminho para que o agir comunicativo habermasiano possa penetrar nas massas, como defende a dialética marxiana.

04. Tenho algum acordo com o que Habermas em sua recente entrevista considera um “pensamento fraco” ao se referir ao “populismo ‘intelectual’ de direita”: fraco, sim, em cognição, eu diria, mas forte em seu alcance e perversidade, haja vista a direita brasileira que, com inegável ajuda da esquerda (traída?) que embarcou na colaboração de classe, pavimentou a ascensão da ultradireita, até então mantida em estado de inibição. Viva ela sempre esteve, mas até então inibida e à espera do bote. A direita pseudo-iluminista serviu de escada para o reacionarismo explícito e obsceno da ultradireita. De outro lado, o que Habermas denomina de populismo “cotidiano” de direita, penso ser ainda mais perverso, haja vista a bolha bolsonarista – um tipo de mônada antileibniziana – resultante da oportunista, fecunda e necrófila combinação de ódio, intolerância, ignorância invencível e fundamentalismo religioso. Na história, penso, não existe propriamente o inesperado. O que nomeamos por inesperado está sempre à espera de eclodir.  E não se agitem, porque não se trata aqui de exercício heideggeriano.   Não se deve reduzir a definição do evento ao eventual. Assim como o velho Heráclito sentenciava que a natureza gosta de se esconder, também o evento tende a esconder o subsolo do qual emergiu. Ainda que fundadas no método da luta de classes, nossa capacidade de objetivação histórica pouco se deteve no subsolo em que se abrigava o lumpesinato – da miséria à alta burguesia – que hoje ocupa, e por via eleitoral, o poder no Protetorado Norte-Americano do Atlântico Sul. Ultradireita é o nome civilizado desse lumpesinato.

 05. Dentre outros, aqui no Brasil, e distante da temperada Alemanha habermasiana, um fator que fez o amálgama solidificado entre a ultradireita “intelectual” e a bolha bolsonarista, formada por um lumpesinato que vai da burguesia miserável à miséria da mais perversa degradação social, é a forma como a linguagem do poder se legitima e se faz compreender e aceitar graças à capacidade de simplificar a realidade e criar a falsa expectativa do agir eficiente. Vale sempre lembrar que o papel do intelectual coletivo não é simplificar o que é complexo e propor a eficiência falsa. Paulo Freire, ao pensar a educação como teoria do conhecimento, insistia em fazer a ponte lógica e ontológica entre a leitura do mundo e a leitura da palavra. Joseph Dietzgen, operário do Curtume Vladimir Ostrov, em São Petersburgo, tornou-se conhecido pela ousadia de escrever uma carta a Marx, em 24 de outubro de 1867, em que afirmou de modo preciso que “pensar significa desenvolver o geral a partir do que é dado pelos sentidos, do particular”. Não é recorrer ao simples para manter a consciência na simplicidade carente de mediações.  Simplificação e eficiência, em sua forma mais tosca e utilizada pela ultradireita, produz uma identificação direta, sem mediação, sem possibilidade de crítica, entre governado e governo. Afinal, diz o governado, “ele fala, fala como um de nós, e fala o que queremos falar”. Mantida no nível do que Kosik chamava de mundo da pseudoconcreticidade ou da fenomenologia do primeiro contato, para incluir Bachelard na conversa, o cancelamento de mediações é fundamental para fortalecer o pensamento de rebanho. Nisso vejo o arremate do que Wilhelm Reich – que imagino tenha morrido de raiva – chamava de peste emocional da humanidade, quando o governado é infestado com a crença de que ele governa quando vota.

06. Engana-se quem vê Bolsonaro como uma figura de linguagem. “Ele é tudo, menos um acidente”, como bem notou o professor Marcelo Seráfico.  Ele não é uma circunstância conjuntural. Não é um acidente separado de uma essência, nesse caso uma essência social, com a vênia de Aristóteles e Tomás de Aquino, que imaginavam poder separar uma da outra. Menos ainda um evento político, episódico, que pode ser eleitoralmente removido. Trata-se antes um corpo social. Ele representa estruturalmente o antes, o agora e o depois de no mínimo um quarto, e pode chegar a um terço, com forma e conteúdo, da totalidade da formação social brasileira, edificada sobre a mais indecente desigualdade social.  O que pode lhe garantir uma sobrevida de longo curso. A esquerda brasileira, mesmo a que se reivindica classista, na qual me incluo, continua refém dos espaços acadêmicos, espaços assepsiados e distantes da periferia. Uma esquerda sempre mais sensível ao agir comunicativo de Habermas do que à pedagogia dialógica do oprimido de Paulo Freire. Mais da metade da Pedagogia do oprimido, que prefiro denominar de Pedagogia dialógica do oprimido, é dedicada à dialogicidade como essência da práxis educativa.   Na Pedagogia do oprimido, publicada em 1968, 13 anos antes da Teoria do agir comunicativo, de 1981, Paulo Freire já conferia centralidade, e a partir do sujeito social oprimido, ao paradigma dialógico que tornou Habermas mundialmente festejado. Não me consta que Habermas tenha lido Paulo Freire, e se leu, não permitiu que sua Teoria do agir comunicativo, enredada nos limites do sujeito social burguês, se contaminasse com as lutas dos “esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem”, a quem ele, Paulo Freire, dedica a Pedagogia do oprimido.

07. Distanciando-se da centralidade da categoria trabalho, num esforço de largo fôlego teórico para se afastar do Marx das lutas classistas, Habermas preferiu o conforto burguês e discursivo da teoria do agir comunicativo à luta concreta, desigual, dos oprimidos da terra. O que não difere muito de nossa intelectualidade, mesmo a de esquerda, que em sua maioria continua pequeno-burguesa, contente e sempre torce o rosto às contribuições de Paulo Freire. Afinal, é sempre mais charmoso e deslumbrante manter proximidade com a Alemanha rica e temperada de iluminismo do que com o Brasil empobrecido e tostado pela ignorância. Entre Angicos e Frankfurt não existe apenas uma distância geográfica. Por fim, considero necessária a contribuição de Habermas para fortalecer o campo democrático, sem o qual não é possível o exercício da razão filosófica, como bem mostram esses tempos, no Brasil, de acelerada regressão social, de intolerância política, de fundamentalismo religioso e de programático ódio ao pensamento. “A filosofia e a democracia – diz Habermas – não só partilham as mesmas origens históricas como também, de certo modo, dependem uma da outra”. Paulo Freire pode parecer um luxo para a Alemanha iluminista e para a intelectualidade contente, mas continua fundamental para o Brasil submetido à arrogância financeira da baixa política e governado por uma burguesia senhorial e democida. Por isso, nunca me atreveria a levar Habermas a Angicos sem a companhia do grande Paulo Freire.

* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 17 de abril do ano coronavirano de 2020.

Foto: Habermas (centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br)