Lula e a ordem do tempo

* José Alcimar de Oliveira

Ser humano nenhum é isento de contradições, mas somente os grandes são capazes de crescer diante das contradições. Muitos diminuem, se apequenam e mesmo desaparecem por incapacidade e falta de grandeza para lidar com as contradições. Numa carta a seu amigo médico Kugelmann, Marx reconhecia: “sempre me movo em contradições dialéticas”.

A contradição é princípio ontológico. Está inscrita na vida. O que é a vida, senão a tentativa permanente de manter um equilíbrio, mesmo que impermanente, diante de cada contradição? Sem o contraditório não há justiça. Por sua natureza ontológica, mais do que lógica, a contradição sempre termina por romper os arranjos e tramas. Os rios correm, os igarapés correm e, por isso, na Grécia de Heráclito ou no Brasil de Antonio Candido, o ser social nunca toma banho duas vezes no mesmo rio ou igarapé.

O poder religioso e o poder político do tempo de Jesus Cristo davam por certo que o homem Jesus de Nazaré tinha chegado ao fim com a morte na cruz, crucificado, cusparadas no rosto, açoitado, humilhado, ironizado como um rei sob uma coroa de espinhos, com a inscrição não menos irônica e debochada: INRI (Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum – Jesus de Nazaré Rei dos Judeus). Resultado: Venceu a si mesmo, venceu o mundo. No mundo tereis tribulações, mas tende coragem, eu venci o mundo (Jo 16,33).

A direita e a ultradireita já tinham feito o cálculo e sentenciado:  Lula preso, Lula acabado. Mas a história costuma castigar os que tentam falsificá-la, e absolver os que combateram o bom combate. Lula é o exemplo em vida, contraditoriamente elevado, dessa sentença ontológica e histórica.  Lula é a contradição revestida dos afetos que emanam do povo-multidão. Saiu da prisão ao encontro da história. Saiu do cárcere maior do que entrou. Os que o encarceraram continuarão prisioneiros, ainda que fora do cárcere, porque seguirão indignos da liberdade de quem permanece livre, dentro e fora da prisão.

Quando se é livre a prisão, ao contrário do que pretendem os inimigos da liberdade, termina por tornar mais livre e forte o injustamente encarcerado. Não se prende um grande homem ou uma grande mulher. É o que testemunha a história de Antonio Gramsci, Nelson Mandela, Graciliano Ramos, Pepe Mujica, Angela Davis, Rosa Luxemburgo, dentre outros grandes exemplos.

Nenhuma prisão pode subtrair história a quem imprimiu em sua biografia a força ontológica, coletiva e histórica do povo-multidão, cuja verdade sempre se desvela. Mas quem se apequena e chafurda na pequenez jamais terá   grandeza para reconhecer os que se fazem grandes diante ou das próprias contradições ou daquelas criadas pelos que tentam falsificar o devir da história.

Lula materializa aquela que é considerada, segundo Heidegger, a mais antiga e misteriosa sentença do pensamento filosófico ocidental, única sentença conhecida do grande Anaximandro de Mileto: “De onde as coisas têm seu nascimento, para lá também devem afundar-se na perdição, segundo a necessidade; pois elas devem expiar e ser julgadas pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo”.  Segundo o Mouro de Trier, o tempo é o espaço da formação humana. Agostinho, bem antes do Mouro, via o tempo como distensão da alma na forma de presente do passado, presente do presente e presente do futuro. 

* Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, 09 de novembro de 2019.

Foto: Ricardo Stuckert – Divulgação Facebook Lula