
01. No vídeo abaixo aparece a minha sobrinha Jamyla de Oliveira Mussa Dib, filha de minha irmã Dulce Enilde de Oliveira, cearense de Jaguaruana, Ceará. Ambas trabalham no Mercado Adolpho Lisboa, em Manaus, no recanto Dulce das Ervas, bem visível e situado à esquerda do final do corredor para quem entra pelo pórtico principal do conhecido Mercadão. Comparada à degradada arquitetura da dita Feira da Manaus Moderna, a bela construção do Adolpho Lisboa ainda assoma como um restrito oásis na Manaus maltratada pelo arrivismo do capital.
02. Nesse Mercado nosso pai Marcondes Pinheiro de Oliveira foi assassinado em 09 de julho de 1989, em sua pequena banca de produtos regionais e de onde tirava o sustento da família, de minha mãe Ana Nilda de Oliveira e de seus 12 filhos. Ali ele vendia andiroba, copaíba, mel de abelha jandaíra, mel de cana, frutas e outros produtos de nossa Amazônia. Para os demais feirantes ele era o Marcondes do Mel, um cearense prosador, alegre, privado da cultura letrada, mas cheio da sabedoria da cultura popular.
https://www.facebook.com/watch/?v=111035473606390803. A vida verdadeira de uma cidade está nas Feiras e nos Mercados, jamais nos Shopping Centers, que são todos iguais e artificiais. Em Manaus ou em Hong Kong, as mercadorias são sempre as mesmas. Até o comportamento dos consumidores é igual e padronizado. Diferença, beleza, variedade, sabores originais, iguarias, produtos regionais, só encontramos nas Feiras e Mercados. Nesses espaços, públicos e livres, não há lugar para a discriminação de pessoas, menos ainda para a boçalidade do consumo conspícuo.
04. Sempre gostei de perambular de forma socrática pelas Feiras e Mercados. Registro, ainda, que de 1972 a 1974, antes de entrar no Seminário Franciscano da Terceira Ordem Regular (T.O.R.) no Bairro Jardim dos Barés, em Manaus, trabalhei com o meu querido e saudoso Pai Marcondes no Mercado Adolpho Lisboa. Às cinco da manhã estávamos lá, meu pai e eu, começando o dia com um delicioso mingau de banana e tapioca.
05. Lá me dei conta, diante da desenvoltura e do faro de pequeno negociante de meu velho, que eu não levava jeito para a atividade comercial. Seu tino de vendedor, sempre alegre e destituído do espírito de acumulação, cativava a muitos.
Quanto a mim, desatento ao devir das vendas, mais lia do que vendia. Mas nunca ouvi de meu pai a menor reprimenda. Até se orgulhava do filho que transformara o Mercado em recanto de leitura.
Lembrei-me, mais uma vez da bela definição de Walter Benjamin sobre Paris: um imenso salão de biblioteca atravessado pelo Sena. Comparado ao rio Negro, o Sena, no máximo, alcançaria o estatuto de um igarapé açu.
06. Marcondes Pinheiro de Oliveira era um narrador na melhor definição de Walter Benjamin. Seus registros e contas eram feitos de memória. Um itinerante da tradição oral. Gostava de caminhar. Mas os narradores desapareceram.
No tempo da pressa on line não há lugar para a prosa desinteressada. Marcondes era um prosador. Prosa e pressa se excluem. A ele bem se destinavam as palavras do itinerante Jesus de Nazaré: “Eu te louvo, Pai, porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25).
07. Seria impensável ver o meu velho pai Marcondes trabalhando num Shopping Center. Aliás, ele foi arrancado do nosso convívio em 1989, dois anos antes da inauguração do primeiro Shopping Center de Manaus, o Amazonas Shopping Center, em 1991. A vida falsa e assepsiada dos Shopping Centers, das figuras bem arrumadinhas, jamais iria fazer falta ao Marcondes do Mel, que fez do Adolpho Lisboa a sua segunda casa, de domingo a domingo. Marcondes Pinheiro de Oliveira é constitutivo ontológico, mesmo que anônimo, da memória do Mercado Adolpho Lisboa.
De seu filho, José Alcimar de Oliveira. Teólogo sem cátedra, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 07 de dezembro do ano coronavirano de 2020.