Novas guerras, velhos problemas

Marcelo Seráfico*

Em texto que circula nas redes sociais, Augusto de Franco enumera 10 motivos para se opor à Rússia e apoiar os EUA/OTAN no conflito que envolve a antiga sede do poder soviético e uma das repúblicas que participavam da união que tornava o antigo país socialista a potência que, com os EUA, mantinha o mundo num estado de guerra fria.

Do conjunto de motivos, apenas a introdução se sustenta, pois reconhece o enviesamento característico de boa parte das análises sobre os fatos. Enviesamento a que, todavia, o próprio autor não resistiu.

O principal enviesamento em que cai é o de assumir uma posição pró-EUA e, indo além, de ver os EUA como defensores – quase campeões!? – da democracia. Bastaria lembrar o Patriot Act e o que se soube a partir das revelações de Edward Snowden para constatar a profundidade e extensão do compromisso dos EUA com a liberdade.

Não precisaríamos, claro, ir tão longe para descobrir isso: não é novidade o modo de ação da “diplomacia”, das agências de inteligência e das forças armadas norte-americanas – digamos, da elite do poder norte-americano, como qualificou há anos C. Wright Mills. Seja para fustigar conflitos, seja para minar resistências aos interesses de suas elites, seja para patrocinar guerras, o Estado daquele país vem operando no mundo todo e na América Latina, em particular, golpes, guerras híbridas, law-fares e toda forma criativa de violência às tentativas de democratização que se desloquem um milímetro de seus próprios interesses estratégicos.

Até 1991, o globo terrestre foi o palco de guerras quentes travadas em nome dos que manipulavam as cordas da Guerra Fria. Derrubado o Muro de Berlim e desfeita a URSS, erigiu-se o muro ideológico do fim da História, sob o signo da universalização do neoliberalismo.

Da idealização do futuro ao pesadelo do presente passou-se uma década.

As máfias russas, paridas pelo casamento arranjado entre a burocracia soviética e o assessoramento econômico ocidental, foram agentes centrais da inteligência que metamorfoseou o Estado e a sociedade russos aos termos neoliberais. Lá como cá, a saída da ditadura soviética foi sucedida pela ditadura das finanças globais. Como lembra texto, também enviesado, de Max Seddon ao Financial Times (Vadmir Putin, Russia´s resentful leader, takes the world to war, 22 de fevereiro de 2022), Putin ascende nesse contexto, ao lado de Boris Yeltsin, o fantoche do Ocidente.

Nada dessa história, porém, justifica uma guerra, mas ajuda a entendê-la. Dificilmente vamos aprofundar esse entendimento abstraindo das razões apontadas por Noam Chomsky em entrevista concedida ao portal Truthout.org (Chomsky: US approach to Ukraine and Russia ´left the domain of rational discourse´”, 03 de fevereiro de 2022).

Tanto o nacionalismo epistemológico a que adere de Franco, quanto o psicologismo político de Seddon, remetem a formas variadas de sectarismo (a luta do bem contra o mal, da democracia contra a ditadura ou do contentamento contra o ressentimento) que contribuem para o reforço do que Chomsky qualifica como o “abandono do domínio racional do discurso”; o abandono, fundamentalmente, da análise do processo histórico que culminou com a guerra e com a adesão, ingênua ou abertamente interessada, aos argumentos do Império.

Reconhecer essa circunstância não significa relativizar a posição de quem quer que seja, mas sim admitir que na ignição da máquina do mundo oficial o combustível é o mesmo que, no mundo real, produz desigualdade e autoritarismo.

Somos, os cidadãos comuns, tangidos a nos manifestar a favor ou contra EUA ou Rússia, como se fazia em relação às potências que lideravam os blocos conflitantes na Guerra Fria. Mas as condições são completamente diferentes. A História já é outra.

Como negar, por exemplo, que os regimes democráticos da maioria dos países da Europa Central e dos EUA foram e são bancados pelo colonialismo, pelo neocolonialismo e pela brutalidade por eles imposta ao resto do mundo.

Portanto, as raízes da democracia do “Ocidente” estão fincadas no solo fértil e regado com o sangue do Novo Mundo. Daí, também nesta situação, não devermos nos indagar sobre quem está com a razão, mas sim tentar entender as motivações reais dessas forças e para onde elas tendem a nos levar.

A matança de seres humanos em nome de seja lá o que for, não se justifica. Assim como não se justificaria, em países democráticos que estimulam a democracia, interferir na vida de outros países.

Mas o mundo não é assim.

Os EUA estimulam e dependem dos países da OPEP, além de vigiarem seus próprios cidadãos e os de outros cantos do mundo. A Rússia é governada por um autocrata que busca restituir a seu país o protagonismo que um dia teve na arena internacional.

A situação toda se parece mais com a criada pelo Tratado de Versailles do que com o sonhado “fim da História”, de Francis Fukuyama. A História segue seu curso trágico, com novos ingredientes.

Depois de termos vivido o colonialismo no “Novo Mundo” e o nazifascismo no Velho, deveríamos ter aprendido algo sobre as condições para se viver em paz. Não aprendemos. Aqui estamos.

*Marcelo Seráfico é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas

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