O Centrão, a infelicidade da consciência feliz e a mentira sob medida

*José Alcimar de Oliveira

01. Se para Aristóteles há diversas formas de nominar o ser, nem sempre o ser corresponde ao que é dito pelo nome. A medida do ser nunca é comensurável à medida do nome. Mas não é de somenos o que o poder de quem pode nominar tem sobre o ser. A razão filosófica, ou precisamente quem pensa o ser no itinerário dialético da ontologia do ser social, trabalha noutra direção: a autoridade do nome não procede do poder de quem nomina, mas da objetivação histórica que o sujeito social, munido de mediações dialéticas, é capaz de elaborar acerca do mundo subjetivo da consciência, do mundo objetivo das coisas e do mundo socialmente constituído.

          02. Fora desse fundamento materialista, histórico e dialético só há lugar os artifícios do engano e da mentira sob medida. Em seu clássico Eclipse da razão, precisamente no último capítulo – Sobre o conceito de filosofia –, Max Horkheimer afirma que cabe à Filosofia promover um “esforço consciente de costurar todo o nosso conhecimento e compreensão em uma estrutura linguística na qual as coisas sejam chamadas por seus nomes corretos”.

          03. O que significa chamar as coisas por seu nome correto? É não apartar o nome de seu necessário referencial ontológico-social. Fora desse referencial o nome ganha uma liberdade, sempre falsa, à custa do sacrifício da verdade histórica. Mesmo nos limites do campo religioso, a dialética paulina assegura que “a letra mata, mas o Espírito vivifica”. O Espírito só tem poder de vivificar e libertar se opera a ruptura com a letra (lei) do fundamentalismo farisaico.

          04. Nesses tempos a cada dia mais sombrios, presididos por uma odiosa e pervertida apartação entre a letra e a realidade, o Brasil aprofunda o fosso ontológico entre a norma e a vida. A vida passa a ser normalizada por subtração de direitos e a realidade é permanentemente malbaratada pelos artifícios discursivos referenciados na verdade que emerge do poder autocrático. E o que dizer da volta à cena do Centrão? Como afirmar que o governo faz um giro de volta ao Centrão se dele procede e dele nunca saiu? Desde 1500 o Brasil é o Centrão. O Centrão descentra e desestabiliza qualquer tentativa, por mínima que seja, de arranhar os privilégios da Casa Grande Senhorial. Os governos do PT, a despeito da política de colaboração de classes, dão bem a medida do poder desmedido do Centrão. O golpe de 2016 tem sua assinatura.

          05. É celebre o conceito hegeliano de “consciência infeliz”. Trata-se de uma figura de sua dialética por meio da qual a contradição habita a consciência e nela cria o duplo e necessário incômodo de ser, simultaneamente, consciência objetiva e subjetiva. De Hegel ao Brasil atual, e invertendo os pólos da dialética, o Centrão é nossa origem, nosso destino e a infelicidade de nossa consciência feliz e mentirosa, sem estatuto hegeliano, porque impedida – em razão de sua gênese heterônoma – de tornar consciente a infelicidade socialmente construída. Para usar, respectivamente, os conceitos de José de Souza Martins e de Marcos Nobre, o Centrão é o “poder do atraso” e nosso “imobilismo em movimento”.

          06. Se o real não existe senão para a razão, penso por necessário afirmar, sempre, a precedência ontológica do real sobre o legal, do mundo sobre o discurso, da leitura do mundo sobre a leitura da palavra (Paulo Freire), do ser social sobre o mundo subjetivo. Na raiz do que hoje se denomina de pós-verdade, de autoverdade, está em ordem de condicionamento histórico a filosofia analítica e sua dileta filha, a análise do discurso. O movente ideológico desse movimento por meio do qual a razão foi tomando distância do ser, do ser natural e do ser social, é a crença obstinada de que a chave de resolução dos problemas do mundo reside na análise filosófica ou discursiva da linguagem. Ao declarar que os limites da linguagem delimitam os limites do mundo, Wittgenstein acende de uma vez por todas a luz ofuscante do velamento das contradições ontológico-sociais constitutivas do mundo do ser social.

          07. Ao dar tratamento filosófico aos ídolos (idola) que impedem a razão de aceder de forma objetiva ao campo da verdade, Francis Bacon denunciava os chamados “ídolos do mercado” ou do “fórum” (idola fori), que vicejam no complexo e envenenado canteiro da linguagem. São, dentre os ídolos tipificados por Bacon, os mais prejudiciais e agressivos. O Brasil de 2020 permitiria ao grande empirista inglês submeter com sucesso sua teoria dos ídolos ao critério de falseabilidade da epistemologia racionalista de Popper. Segundo Bacon, sob o poder desses ídolos a razão termina por ser governada pelos discursos que ela pensa governar. O que defende a mentira fabricada sob medida imagina-se com um poder de autoria que nunca lhe pertenceu. É uma figura sem consciência da natureza heterônoma de sua autoria.  A esse tipo humano, pervertido e psicopata, que hoje se multiplica como joio a contaminar o canteiro dialético da verdade, cabe, no miolo, o que sentenciou o velho Adorno: vive do cultivo de si mesmo sem si mesmo. Não sei se é a isso que nos meus tempos de estudo teológico chamávamos de ignorância invencível.

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 10 de maio do ano coronavirano de 2020.