O coronavírus e a linguagem da natureza: ou o avesso da dialética

Foto: Agência Brasil

*José Alcimar de Oliveira

Nossa arrogância nos afastou da natureza.

O andar de cima imaginava-se a salvo em sua consciência de condomínio para abusar da natureza. Mas a natureza, por meio do coronavírus, deu ao andar debaixo o poder de manifestar a totalidade degradada para a qual a casa grande torcia o rosto. A natureza e sua pedagogia da dialética pelo avesso.

O coronavirus me fez lembrar de Gadamer (1900-2002, isso mesmo, sua vida atravessou três séculos) ao lembrar que o  auto-objetivante é a doença e não a saúde.

Mas como o pior é da lógica da cultura, a doença civilizacional se naturalizou de tal forma que parecia impedir a objetividade da afirmação gadameriana.

Quantas vezes, diante de consciências adoecidas, havia insistido Brecht em sua pedagogia do distanciamento, não social, no caso: peço com insistência, não digam nunca: ISSO É NATURAL.

Estranhamente, fomos obrigados, todos – talvez ainda não – a nos ver, a nós e aos outros, pela mediação de um vírus e não, como seria esperado, pela medida cognitiva da cultura construída pelo ser social.

O Mouro de Trier, bem antes da emergência da questão ambiental, assinalava que o ser natural é o nosso corpo inorgânico.

A natureza, a quem a cultura moderna ocidental tapou os ouvidos, grita agora por si, pelos pobres, por todos, pela linguagem de um vírus.

Não resisto a dar voz a Walter Benjamin em sua Origem do drama trágico alemão ao reconhecer que se lhe fosse concedido o poder da linguagem, a natureza inteira por-se-ia em lamento.

Mesmo sem estatuto teórico para isso e com a devida reserva, não reluto em dizer e para a alegria do autor das Teses sobre a história, que a natureza, rompendo o regime de silêncio e de heteronomia que lhe impôs a arrogância da cultura, recuperou ela mesma o poder da linguagem, ainda que por estruturas gramaticais viróticas.

De qualquer forma, digo, impôs um silêncio inesperado à arrogância financeira da linguagem do capital. Ânimo forte e solidário a todos, mesmo sob isolamento social compulsório.

* Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 22 de março do ano coronário de 2020.