O deus Ianus e o Brasil de passado incerto e futuro sob sombras: sete notas filosóficas

Imagem: Ianus, divindade romana com duas faces opostas, a indicar a transição entre o fim e o início.

*Por José Alcimar

Nem um só valor conquistado pela humanidade se perde de modo absoluto; tem havido, continua a haver e haverá sempre ressurreição. Chamaria a isso de invencibilidade da substância humana (grifo da autora), a qual só pode sucumbir com a própria humanidade, com a história. Enquanto houver humanidade, enquanto houver história, haverá também desenvolvimento axiológico no sentido acima descrito (Agnes Heller).

01. Janeiro vem de Ianus, divindade romana com duas faces opostas, a indicar a transição entre o fim e o início. Isso no relato mítico, porque no Brasil do lúcido Maluco Beleza a transição sempre se perde pelo meio e a força do atraso termina por amarrar o futuro ao passado.

É o confronto entre a divindade de duas faces e o Brasil de mil disfarces. José de Souza Martins, o visionário das ciências sociais que descobriu o demônio nas fábricas, nos deu uma lição insuperável sobre o que significa no Brasil o poder do atraso.

A Ianus liga-se tanto a gênese das cidades quanto um período de muita abundância, paz e justiça social. As antigas moedas romanas apresentavam Ianus numa face e no reverso a proa de um barco. O medo que nos assombra, nesse Brasil de sombras, é que no barco de 2021 a proa ceda lugar à popa.

          02. Ianus, por força de sua capacidade de ver para frente e para trás era um deus dialético. Dizem que num tenso mas civilizado diálogo entre ele e o Mouro de Trier este o teria recriminado por ter inventado o dinheiro. Ou foi atribuído a ele a criação dessa tirania?

Não ficaria surpreso se viesse a descobrir que tudo não passou de ardilosa armação soprada no ouvido de Marx pelo cínico Diógenes. É da natureza do diabo provocar divisão. Quanto a mim, guardo admiração pelo velho cínico grego, incomparável ao cinismo (na verdade escárnio) de baixíssima extração da jovial e empreendedora autocracia burguesa.

Nos célebres Manuscritos de Paris, o autor descapitalizado do Capital registra que no dinheiro se aninha o operador universal da divisão. Marx e Diógenes têm muito em comum.

          03. Somente quem toma o presente como único espaço da mudança pode salvarguardar o futuro e impedir que os espectros do passado continuem no presente histórico a sabotar o nascimento do novo. Não há saída fora da ação. Sartre falava da necessidade de agir mesmo sem esperança. Está certo. Não é a esperança que gera a ação. Sem ação toda esperança é vazia.

A esperança verdadeira nasce da ação, da luta. Para o caminhante coletivo não há caminho feito, porque o verdadeiro caminho se faz ao caminhar. Não há caminho sem que se caminhe de forma coletiva, solidária e movido pela utopia da foice e do martelo. No vasto mundo, e no Brasil de forma peculiar, distopia e retrotopia apostam em nos lançar em marcha regressiva. Se para nós é caminho, se faz; não pode ser destino.  

           04. Conforme um dos maiores pensadores dos dramas de um mundo feito de relações descartáveis, Zigmunt Bauman (1925-2017), estamos sob o tempo de retrotopia, em que as incertezas do presente querem nos lançar a um passado caricato e idealizado. Seria um equívoco analítico classificar esse movimento em plena ascensão como reação conservadora, liberal, de direita, no sentido clássico.

É mais do que reação, é reacionarismo organizado, programado, feito de truculência, aversão ao pensamento, azeitado com fundamentalismo religioso e tudo bem amarrado e presidido pelo sociometabolismo do capital, que a tudo controla e não se submete a controle nenhum. Errou Hegel ao ver no Cristianismo a última religião da humanidade. O capitalismo é hoje a religião das religiões. 

          05. O poder do capital é o Luís XIV do século XXI, cuja figura do Rei Sol cedeu o trono ao Rei das Sombras, que estende sua soberania sem fronteiras para além de indivíduos e Estados. É a onipotência que ao transformar capitalismo em religião criou um problema habitacional para Deus, pelo menos para a concepção de Deus das teologias não afinadas com a teologia venal da prosperidade.

O único mandamento dessa neo-onipotência é o da “venalidade universal”, para usar a caracterização – hoje sob anátema – do autor da Miséria da filosofia. Por sob as sombras do neo-obscurantismo produzido pelas luzes apartadas das promessas emancipatórias do iluminismo, o Rei Capital pode afirmar: O ESTADO SOU EU, porque é do capital que emana todo poder.

          06. Há um quadro de Paul Klee, denominado Angelus Novus, da década de 1920 (atualmente em Israel), que dá a medida desses tempos em que as sombras parecem mais velozes que as luzes da razão: o rosto do anjo – o Anjo da História, segundo Walter Benjamin – estranhamente volta-se para o passado, a sugerir que o futuro nos amedronta.

Não temos outro lugar para intervir senão no presente. Os recursos naturais do planeta terra são finitos e não há como manter os atuais padrões de produção e consumo requeridos pelo sociometabolismo do capital. A vida é irredutível à venalidade incontrolável da taxa de valor de troca que submete a terra e as pessoas à condição de mercadoria. Ou recuperamos a forma comunitária do valor de uso de todas as coisas ou caminharemos todos para o abismo social.

          07. Concordo com Walter Benjamin: o capitalismo não morrerá de morte natural. Direi: será como um Titanic: naufragará com os que o mantêm funcionando desde os porões, humilhados e sem acesso à luz e ao ar, mas igualmente levará os de cima, ricos e ociosos, em sua ostentação e insensatez.

Ou será possível à minoria ultraburguesa superviver insulada em bolhas condominiais, com ar limpo e água purificada, segregando e condenando a maioria da população ao inferno social? Não dispomos de um planeta alternativo. Iludem-se os burgueses em sua irracionalidade. As chamas do inferno social inevitavelmente derreterão seus excludentes e indecentes condomínios.

Aos que se recusam a ceder o futuro ao adversário (ou aos inimigos de classe), prósperas lutas e feliz desobediência.

* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidde Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho de um desejado cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos três dias de janeiro (sob olhar de Ianus) do ano (ainda) coronavirano de 2021.