O que comemorar nos 352 anos da Manaus desfigurada e colapsada pela necrocracia do capital?

MANAUS, 14/07/2014 AVENIDA TORQUATO TAPAJOS, ZONA NORTE FOTO: ROBERVALDO ROCHA / CMM

José Alcimar de Oliveira *

“A cidade nos faz livres” (M. Weber)

01. O que faz da cidade uma  cidade? Desta palavra  procedem os conceitos de cidadania e cidadão. É possível uma cidade apartada do ideal da cidadania? Ou uma cidade sem lugar para cidadãos ou cidadãs?  Devemos a Aristóteles a mais completa e filosófica teoria da cidade do mundo antigo. 

Quando Manaus começou o seu nada civilizado processo urbano, a obra A política (que é uma teoria da cidade) de Aristóteles já contava mais de dois milênios. A despeito da limitada cidadania na Cidade Estado de Atenas, não alcançando mais do que 10% dos seus habitantes, a Manaus de 2021 não é menos excludente do que a referencial Pólis grega. Manaus, com seus desafios urbanos e dilaceramentos sociais, está a exigir uma inadiável teoria da cidade.

02. O mais grave do diagnóstico da Manaus carente de horizonte ontológico e social é que a cidade, ao contrário de Atenas, parece que nada aprendeu com o mestre de Estagira. Aqui a história se fez reversa e cruel, porque os verdadeiros e originários habitantes de Manaus, que deram nome à cidade, foram os primeiros a ser excluídos das promessas da cidadania.

Manaus se  edificou contra os povos que já viviam a cidadania muito antes da emergência desse conceito e de suas falsas promessas. Como pode uma cidade edificar-se pela rejeição do que lhe confere substância ontológica?

03. Cícero nos fala da bene morata civitas, da cidade dos bons costumes. Manaus nada incorporou de Cícero. Ergueu-se presidida pelos maus costumes. Falta a Manaus uma reflexão ética com o estatuto de uma metafísica dos costumes, tal como escreveu o velho Kant.

Por força das contradições de toda ordem que fazem de Manaus uma não cidade, deveria ser uma metafísica histórica e dialética dos maus costumes, porque a arquitetura que orientou o projeto urbano de Manaus assentou-se no etnonocídio e na destruição do corpo e da alma de sua gênese indígena.

04. A Manaus do capital genocida, vilipendiada pelo festim de sua perversa e boçal classe dominante, edificou-se branca, racista, pervertida e com devotado ódio e desprezo por sua cultura indígena e caboca. Manaus continua a concentrar renda para poucos à custa da miséria que atravessa e sufoca a vida de mais de dois terços de sua população.

A Manaus dessa parcela arrivista, que já se espelhou em Paris no tempo do capitalismo extrativista, hoje se move esquizofrênica para o consumismo de Miami. O espelho partido no qual a  Manaus colonizada se mira e se recusa a ser o que é conduz a um processo de identificação com quem lhe devota rejeição.

05. A tradição histórica e materialista do pensamento nos ensina que o direito à cidade diz respeito, antes de tudo, à classe que trabalha e produz riqueza. Manaus é obra coletiva dos povos indígenas e da populacão tradicional, constituída de cabocos e cabocas, negros e negras, migrantes e imigrantes de rica e diversa origem. Manaus é Amazônia e a Amazônia é Manaus. O que a simbiose une o parasitismo do capital separa.

06.São os subalternizados pela ordem escura do capital que, de fato, constróem a cidade. Afinal, quem construiu Manaus?

Os ricos não se interessam pela cidade de Manaus. Preferem os condomínios apartados, distantes, onde se protegem do povo. Preferem a cultura assepsiada, individualista e sem cheiro dos shopping centers às feiras e mercados, onde há circulação de gente e a alegria se manifesta sem o filtro do falseamento da vida.

07. O que é bom e dá vida a Manaus tem bem mais do que 352 anos. Manaus precisa recuperar sua gênese indígena e caboca. Diante do acelerado colapso ambiental produzido pelo insustentável padrão de produção e consumo do ecocida ethos capitalista,  Manaus, se fosse governada pelas mãos e sabedoria de quem pensa a cidade como espaço cosmopolita de produção do bem viver, estaria vocacionada a se tornar a Capital Ecológica do Mundo.

Que cidade do mundo, do porte de Manaus, pode se ver e se banhar nas águas de um rio tão belo quanto o Negro que geometriza sua geografia?

* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra,  segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios  Solimões e Jaguaribe. Em 24 de outubro de 2021, nos 352 anos da cidade de Manaus.

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