“O que mais nos preocupa é proteção territorial: o Vale do Javari não está protegido”, afirma Bushe Matis

Após três brutais assassinatos e uma série de registros de violência e ameaças a indígenas, a desproteção do Estado permanece como o pior problema da região que concentra o maior número de povos em isolamento voluntário do mundo. No final de março, os povos contatados do Vale do Javari realizaram uma assembleia e elegeram a proteção territorial como prioridade. Na reunião, escolheram Bushe Matis, 36, como novo presidente da Univaja (União dos Povos Indígenas do Javari), pelos próximos três anos.

O Vale do Javari é a segunda maior terra indígena demarcada do País e fica no extremo oeste do Amazonas, na fronteira com o Peru. Com 8,5 milhões de hectares, a área equivale a 56 vezes o tamanho da cidade de São Paulo.

A assembleia fez história: pela primeira vez o povo matis está na liderança da representação política dos povos do Vale do Javari; os korubos – contatados em 2018 – participaram e votaram; e os povos indígenas derrotaram as tentativas de interferência de grupos políticos locais na decisão da Univaja.

“O que mais nos preocupa é proteção territorial: o Vale do Javari deveria estar protegido e não está”, declarou Bushe Matis em entrevista ao blog. Ele afirma que o território, em vários pontos, está vulnerável aos invasores, assim como a vida dos isolados. Por evitarem o contato até com indígenas e pelo sucateamento da Funai, há um apagão de informações sobre a condição dos 17 povos isolados identificados na região.

“Do lado do Acre está tudo livre, pô, não tem proteção nenhuma. Nada para identificar. Do lado de Ipixuna e Eirunepé também”, afirmou Bushe Matis.

Formado em administração de empresas, Bushe afirma que a meta no Vale do Javari é fortalecer a união entre os povos e a Univaja para que todos se sintam representados e com seus direitos defendidos. Além disso, o novo presidente da Univaja afirma que o Estado precisa investir, estruturar as instituiçoes e torná-las presentes na região.

Em entrevista ao blog, Bushe Matis explica como funciona a política indígena e a relação dos povos indígenas com o sistema de livre escolha de lideranças.

O Vale do Javari é território de 26 povos indígenas, sendo 19 em isolamento voluntário. Os povos de contato são os kanamari, kulina pano, marubo, matsés, matis e os considerados de recente contato korubos e tsohom-dyapa.

Três brutais assassinatos de não indígenas marcaram a região, nos últimos anos. Todos miraram pessoas que atuavam em defesa dos direitos humanos e indígenas. Em 2019, o colaborador da Funai Maxciel Pereira dos Santos foi excecutado numa rua de grande movimentação em Tabatinga, pouco tempo depois de participar de apreensão de produtos naturais retirados ilegalmente da terra indígena.

Em junho do ano passado, Bruno Pereira – um dos principais indigenistas da sua geração – foi assassinado, esquartejado e teve as partes do corpo queimadas e escondidas na mata por pescadores ilegais que atuavam no Vale do Javari. O jornalista britânico Dom Philips, que o acompanhava, também foi assassinado.

Os três crimes permanecem impunes.

Nos primeiros meses do Governo Lula, equipes do Ibama e Polícia Federal realizaram operações pontuais de combate ao garimpo na região. Na sequência, novos registros de graves ameaças aos indígenas.

Leia a seguir trechos da entrevista com Bushe Matis:

Rosiene Carvalho (RC): Como foi a Assembleia Geral dos Povos do Javari, realizada no final de março, e qual o resultado além da escolha do seu nome para a presidência da Univaja?

Bushe Matis: A assembleia foi muito boa. Teve a participação de quase todas as etnias. Só não dos tsohom-dyapa, uma etnia de recente contato. A grande maioria estava discutindo sobre questão territorial, planos e atividades que a Univaja vem desenvolvendo. O ponto de vista deles. Isso é política indígena. A gente discute e leva tempo, faz levantamento de demandas para que a Univaja, como organização central, possa acatar. E, consequente, encaminhar demanda aos órgãos competentes. Para solucionar os problemas do Javari, conforme cada etnia.

Apesar da aldeia Paraná (onde ocorreu a assembleia) ser muito longe, próximo do Cruzeiro do Sul, no Acre, – a viagem foi um pouco cansativa – mas a participação em si da reunião foi muito boa. Foi a primeira vez que o povo korubo decidiu votar. Três pessoas foram representando o povo korubo na reunião. Primeira vez também, o povo matis foi eleito para a presidência da Univaja. Para dar continuidade ao trabalho que a gestão anterior, a pessoa Paulo Marubo tem feito. Uma boa gestão.

O povo matis, eleito agora, vai dar continuidade nesse projeto

Paulo Marubo pegou uma Univaja sucateada, desestruturada, sem condições. A gestão dele fez projeto, buscou apoiadores, financiadores, levantou a Univaja para estar na situação que está: estruturada, financeiramente em boas condições. O povo matis, eleito agora, vai dar continuidade nesse projeto e, dependendo da demanda que surgir, buscar mais apoiadores e financiadores.

RC: Quando a ministra Sônia Guajajara esteve aí, final de fevereiro, a balsa que ela e sua comitiva desembarcaram estava carregada de postes e outros benefícios para as aldeias. Luz elétrica onde nunca teve. Tudo isso no momento da assembleia da Univaja. Eu soube que, dentre os concorrentes à presidência da Univaja, havia pessoas com ligações e nomeações na Prefeitura de Atalaia do Norte. Qual a pressão do poder político local sobre a Univaja?

Bushe Matis: O Vale do Javari é a segunda maior terra indígena do Brasil. Teve essa visibilidade com a morte do Bruno (Pereira, indigenista) e Dom (Philips, jornalista). Existe, sim, nessa região, de querer interferir no movimento indígena. Mas não existe muito visível. Porque nós aqui do Vale do Javari, todas as etnias, estamos unidos. Essa união a gente leva em diante para não dividir o povo, para não ser manipulado pelos políticos e algumas pessoas que não gostam de indígenas ou querem dividir os indígenas. Ao mesmo tempo que essas pequenas interferências podem querer causar, somos fortes, unidos e a gente leva nossa luta em diante, em prol das pessoas que vivem nas florestas, dos povos isolados e de recente contato. E os que são contatados.

RC: Na política não indígena, as pessoas costumam manter nomes que julgam ter bom desempenho. Consideram ser a melhor opção. Nem sempre é. Mas os povos do Javari mudaram a direção da Univaja. Há um exercício de revezamento entre os povos da região?  É uma característica da política indígena?

Bushe Matis: O movimento indígena sempre teve mudança. Cada eleição é uma etnia. Agora, essa gestão do Paulo Marubo foi nove anos. É porque ele pegou o movimento indígena, Univaja, bem desestruturado. Sem condições. Fragilizado. Tivemos que deixar o Paulo coordenar três mandatos para que ele pudesse levantar e ter confiança dos financiadores e apoiadores. Queríamos que ele fortalecesse o movimento indígena. Para que o movimento indígena chegasse ao nível que chegou hoje.

A mudança na assembleia é porque chegou a hora de mudança. A União dos Povos Indígenas, a Univaja, representa todas as etnias do Vale do Javari. É o momento de trocar, mudar. Até para o (evitar) desgaste do coordenador que ficou tanto tempo. E uma nova liderança entrar com apoio dos antigos gestores.

A gente tem que ajudar a outra etnia a entender, para que ele possa conhecer o que é movimento indígena e como é a luta, como começou.

O objetivo do movimento indígena é único. Lutar pelas nossas causas de educação, saúde, proteção territorial, que é o mais importante. A gente tem que ajudar a outra etnia a entender, para que ele possa conhecer o que é movimento indígena e como é a luta, como começou. E, dessa forma, todas as etnias, coordenando a Univaja, então, ela vai ser protagonista. Esse é o objetivo que nós temos.

A Univaja tem gestor financeiro externo para ajudar o fortalecimento do movimento indígena. A diretoria da Univaja é apoiada por gestão financeira que entende a questão burocrática, contabilidade, prestação de contas, relatório. Essa equipe técnica vai ter total conhecimento e apoiar as ações da Univaja.

RC: Qual a sua avaliação sobre a ocupação pelos próprios indígenas dessas funções técnicas?

Bushe Matis: Esse é o sonho da Univaja. Hoje, essa gestão está dessa forma. Por que? Porque tivemos nas gestões de outras organizações anteriores à Univaja, que o próprio governo entregava dinheiro na mão dos indígenas e no final das contas a equipe não era preparada, não tinha conhecimento dessa parte burocrática. O governo acabou com isso e o movimento indígena ficou endividado. É um sonho que a gente tem: preparar indígenas para a parte de gestão de controle, de atividades, financeira, contabilidade. Para que, um dia, a gente possa ter uma diretoria com mais conhecimento técnico. Meu objetivo é buscar parceiros que querem capacitar a diretoria e um corpo técnico indígena.

RC: Quem vota na assembleia dos povos do Javari? Qual o peso da fala dos mais velhos? As mulheres votam?

Bushe Matis: O estatuto da Univaja diz bem claro: são 20 delegados de cada etnia. Na votação, pode ser no mínimo dez votos e no máximo 20 votos. Dessa forma, é feita a votação. Todos os delegados votam no candidato que eles devem eleger. A participação das mulheres sempre foi normal. Dentre esses delegados, pode ser mulher. Assim que funciona a nossa assembleia.

RC: Como foi a participação do korubos, contatados em 2018?

Bushe Matis: Agora, foi menor (três participantes) porque foi a primeira vez que eles decidiram votar na assembleia da nova liderança. Da primeira vez que eles vieram não quiserem votar. A gente perguntou a eles: “Vocês querem votar? Vocês são indígenas do Javari”. Eles responderam que não. Disseram “a gente vai entender ainda o que é essa votação, o que é movimento indígena”. Dessa vez, não. Quiseram votar.

RC: A assembleia dura quantos dias?

Bushe Matis: Foram três dias: 18, 19 e 20 de março. Três dias de discussão, falando cada tema, fazendo prestação de contas e atividades das associações de cada etnia, depois a votação. A chapa se inscreve, conforme edital. Quando o candidato foi eleito, parabeniza todo mundo. Em seguida, escolhe os coordenadores regionais, um de cada etnia, para ajudar, apoiar o coordenador. Também escolhe o conselho fiscal de cada etnia para que possa estar junto com o coordenador com objetivo, com o recurso que entra. No final, escolhe o local da próxima assembleia. Uma aldeia. Encerra e todo mundo retorna para as suas aldeias.

RC: Como ficou a representação da Univaja?

Bushe Matis: No momento, vamos continuar com a equipe da gestão anterior. A pressão dos povos indígenas é forte em cima do coordenador, querem mudança total, geral. Mas também não é assim fazer mudança de vez por tudo. Tem que entender qual é a atividade emergencial, qual atividade importante, quem faz o papel mais importante. Tenho que analisar e estudar. Estou nessa pressão. Tenho que mudar, mas ao mesmo tempo ver quais são as pessoas que podem representar em Brasília, em Manaus. Está nessa análise e em estudo. As mudanças serão feitas gradativamente.

RC: Quais as prioridades agora? O que precisa tratar com o governo?

Bushe Matis: A Univaja vai montar equipes, ouvir lideranças in loco e acatar as demandas deles. Depois, sentar com o movimento indígena e instituições e apresentar as demandas. Dizer: “Oh, nós temos esse problema. Como vamos solucionar?”.

A gente quer fazer esse trabalho este ano. Além de dar continuidade à proteção territorial que a equipe do EVU (Equipe de Vigilância da Univaja) vem fazendo, de avivamento da demarcação. A picada da demarcação que estava cerrado e tem que abrir mais para os invasores identificarem que existe a presença. Continuar treinamento de agentes ambientais, elaboração de relatórios, treinar parentes no manuseio de equipamentos tecnológicos, como GPS, drone, para que eles possam fazer relatórios bem feitos e apresentar às autoridades como Ibama e PF (Polícia Federal).

RC: Na sua opinião, como o governo deveria lidar com a política para os isolados?

Bushe Matis: Essa região do Vale do Javari, demarcada em 2000 e homologada em 2001, deveria estar protegido e não está. Existe entrada de invasores do lado da fronteira. Tem entrada de garimpeiros do Jutaí, sempre estiveram presentes. Esperamos que o governo, por meio da PF, procuradoria, envie equipes para trabalhar junto com a Funai nos pontos estratégicos, proibindo a presença dos invasores na nossa região.

O que mais nos preocupa aqui no Javari é a entrada do garimpo na região do rio Jutaí. Também tem pequenos invasores que a gente não tem total conhecimento, mas estão identificados. Do lado do Acre, tem fazenda entrando na terra indígena. O governo tem que fortalecer a Funai para que a Funai possa fazer esse papel de proteção, de monitoramento das terras indígenas e fortalecer as frentes de proteção, as cinco bases, que ficam diretamente cuidando da entrada dos invasores.

Esse atual governo devia investir mais recursos para fortalecer Funai. O que mais nos preocupa é isso: proteção territorial.

Tem a base da entrada do Curuça, rio Itacoaí, Ituí, Jandiatuba, Quixito. Do lado do Acre está tudo livre, pô, não tem proteção nenhuma. Nada para identificar. Do lado de Ipixuna e Eirunepé também.

RC:  Houve retrocessos na saúde, segurança, educação indígenas, nos últimos quatro anos. Em relação aos isolados, quais medidas do Estado ficaram paradas?

Bushe Matis: Na nossa região, faltam as pessoas que estudam, identificam onde estão localizados os isolados, se mudaram para outro lugar. A Funai está fragilizada, sem equipe. Precisa de pessoas preparadas para mapear, para a gente saber quantos grupos existem. Foram feitos estudos, mas precisa atualizar. O governo constantemente precisa atualizar essas informações.