Pentecostes e a vida sufocada do negro George Floyd: “eu não consigo respirar”

Foto: Jornalistas Livres

* José Alcimar de Oliveira

01. Nesse dia 31 de maio de 2020, o mundo cristão católico celebra a Festa de Pentecostes, a Festa do Espírito, que em grego é pneuma (sopro). Na tradição bíblica há uma ligação entre o Espírito e o vento: sob o mesmo termo se designa tanto “espirito” quanto “sopro”. O sopro é fonte de vida.

Em Jo 20,22 há o registro de que Jesus de Nazaré “soprou sobre eles (os discípulos) e lhes disse: recebei o Espirito Santo”. A narrativa da Criação está associada ao poder do sopro. Mas nem todo espírito (pneuma) é sopro divino: Paulo Apóstolo, que segundo Alain Badiou (filósofo de tradição marxista) é o grande artífice do universalismo, associa a figura do Anticristo ao “Príncipe do poder do ar” (Ef 2,2).

Essa expressão aparece uma só vez na Bíblia. É o Príncipe que sopra mentiras, como ocorre hoje de forma programática pelos dispositivos mediáticos sob o controle do capital, do obscurantismo e do ódio ao pensamento.

02. Os seguidores do Caminho, era assim que os primeiros cristãos designavam o Projeto histórico de Jesus de Nazaré, só se animaram (entusiasmaram) de forma destemida a fazer da vida o Caminho de construção desse Projeto a partir da experiência de Pentecostes, seguramente uma experiência da práxis. E foi uma bela festa.

Hoje em muitas comunidades populares ainda se faz a Festa do Divino. Festa do Espirito Santo. Festa da Verdade. Não propriamente acadêmica. Geralmente os intelectuais, ou ditos, costumam torcer o rosto para as festas do povo. Mesmo não sendo exatamente um pensador popular, Nietzsche associava o pensamento à festa: “Para muitos pensar é uma tarefa fastidiosa. Para mim, nos meus dias felizes, uma festa e uma orgia”. Onde há vida, há festa e alegria. Socialismo sem festa seria uma tristeza.

03. A morte, esse contingente necessário, ocorre sob as mais diferentes contingências. Mesmo entre os que pregam a superioridade da vida eterna, post mortem, são poucos os que querem antecipar a viagem. Mas nem toda morte provoca indignação ou revolta. As de Sócrates e de Cristo, seguramente provocaram. A de Goethe, sem indício de revolta, foi marcada pelas últimas palavras que pronunciou: “Mais luz!, mais luz!”.

Morrer por sufocamento seguramente está entre a mais cruel e sofrida das formas de morte. Os relatos sobre a experiência de muitos que morreram em razão da Covid-19 são pungentes. Os que escaparam sabem o que é a angústia (aperto) de buscar o ar e não conseguir.

04. O sufocamento que levou à morte o segurança negro George Floyd não foi causado pela Covid-19. Em sua causa, imediata e remota, há a assinatura do ódio racista, do ódio de classe, do Estado como aparato da dominação de classe e da violência como instrumento da política.

Apelidado por seus colegas de Big Floyd, George Floyd, 46, morreu na rua, talvez “atrapalhando o tráfego”, com o joelho de um policial branco sobre o seu pescoço, impedindo-o de respirar. Foi-lhe expropriado o sopro da vida. Num grito sufocado, dizia de forma repetida: “não consigo respirar”, “não consigo respirar”.

05. George Floyd morreu como sempre viveu: sem poder respirar. Sua morte não foi um acidente isolado. Não foi natural. Simone de Beauvoir, na verdade, recusa a ideia de morte natural. Mesmo a morte esperada, temos resistência de aceitar.

Menos ainda a morte de forma covarde, cruel, por sufocamento, que retirou a vida de George Floyd. Por isso, o grito de George Floyd, “não consigo respirar”, “não consigo respirar”, ignorado pelos policiais que o continham de forma covarde e desumana, converteu-se num grito de classe, num grito antirracista, num grito antifascista, que desde Minneapolis começou a ecoar pelo mundo.

06. Não se vence a opressão de classe sem a resistência e a luta de classe organizada. E não ceder à violência nessa resistência não significa desconhecer que as formas de luta dos que vão às ruas, tão apressadamente classificadas como vandalismo pela burguesia genocida, se constituem antes como um ato segundo, talvez até desesperado, por quem chegou ao limite do sofrimento, porque a violência primeira, permanente e estruturalmente organizada, é sim aquela que os “esfarrapados do mundo” (Paulo Freire) sofrem na vida cotidiana. Mas os olhos da burguesia estão longe de enxergar esse sofrimento, individual e coletivo.

07. A luta pela justiça é a mais necessária e democrática das lutas. Apartada da justiça, da garantia dos direitos coletivos, à moradia, à educação, à saúde, ao saneamento básico, ao emprego, à segurança, toda democracia será falsa.

Não existe direito à vida sem a garantia desses direitos básicos. O velho Santo Agostinho, em sua clássica Cidade de Deus (obra considerada por Mészáros como “a maior filosofia da história de inspiração religiosa”), assinala que “remota itaque justitia, quid sunt regna, nisi magna latrocinia” (se desaparece a justiça, o que podem ser os Estados senão um bando de ladrões).

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, na Festa de Pentecostes, aos 31 de maio do ano coronavirano de 2020