
*Marcelo Seráfico
O que acontece no Peru?
Talvez seja possível olhar a situação do Peru como um tipo extremo do processo político na América Latina contemporânea.
Um processo que expressa, de um lado, a reconversão colonial dos nossos países no jogo das forças sociais da transnacionalização do capitalismo e, de outro, da correspondente ruptura das relações entre Estado e sociedade civil.
A economia peruana vem crescendo a taxas de 13% ao ano, ao mesmo tempo em que as instituições políticas vêm se deteriorando.
Com uma produção toda voltada para fora, parece que se intensifica, no Peru, a lógica colonial sob novas formas.
Estas se assentam numa economia primário exportadora, no que diz respeito à produção e, quanto à dinâmica interna, baseada no setor de serviços inseridos em estratégias de transnacionalização, como o franchising, e na comercialização de produtos industrializados importados. Edwin Vidangos[1], sociólogo peruano, captou isso em sua pesquisa com os empreendedores do país andino. Rodrigo Nunes[2], igualmente, mostra o lugar do empreendedorismo na ascensão da extrema direita, algo que exprime uma espécie de “adesão” dos “de baixo” ao neoliberalismo.
É uma espécie de “interdependência agravada” e em escala global, pois também afeta os próprios países que avançaram na industrialização – basta lembrar o que se passa nos EUA em suas relações com a China e o sudeste asiático.
Não se trata, portanto, de um processo que põe em associação apenas as classes dominantes e os “altos circuitos do capital”[3], mas também os agentes dos “baixos circuitos do capital”[4], os trabalhadores precarizados das plataformas digitais, incluindo desde aquelas dedicadas a usar a força de trabalho de modo direto – como a Uber, até as que mobilizam transnacionalmente esses trabalhadores, como as de recrutamento de recursos humanos.
Creio que é um quadro surpreendente de aprofundamento da contrarrevolução mundial.
Um passo adiante do globalitarismo, como o chamou Milton Santos[5], em que as sociedades civis nacionais se veem jogadas, sem maiores mediações, diretamente no jogo das forças de mercado conduzidas pelas grandes corporações e por seus agentes em todas as escalas de governo.
No Brasil, Plínio de Arruda Sampaio Jr.[6] tem tratado desse processo disruptivo, profundo, que põe em causa a própria possibilidade de “projetos nacionais”. E, por consequência, da continuidade da construção dos Estados nacionais.
A volta do nacionalismo sob a roupagem aviltada do patriotismo de extrema direita das camadas populares e médias, parece mais um grito de desespero do que propriamente uma ideologia que orienta um projeto. Até porque carrega nas cores da destruição do pouco que havia de constitucionalidade republicana nacional.
É, enfim, um emblema da capitulação diante dos agentes do globalitarismo.
Daí o aparente paradoxo: clamam contra o “globalismo”[7], mas o fazem sustentando a pauta ultraconservadora do neoliberalismo norteador do globalitarismo.
A cegueira histórica parece ser o chão desses movimentos. O resultado é o desnorteamento político, inclusive dos grupos e movimentos de esquerda.
Claro que tudo isso precisa ser visto nos contextos específicos de cada país, considerando as lutas populares e as reações a elas. Mas acho que a hipótese geral tem alguma pertinência.
*Marcelo Seráfico é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas
[1] Exposição realizada no XXXII Congresso da Associação Latinoamerica de Sociologia, realizado em Lima, Peru, entre 01 e 06 de dezembro de 2019.
[2] NUNES, Rodrigo. Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição. São Paulo: Ubu Editora, 2022.
[3] SASSEN, Saskia. A Sociology of globalization. New York e London: W.W. Norton & Company, 2007.
[4] SERÁFICO, Marcelo. Los agentes sociales de la globalización económica. Boletín Onteaiken, n. 22, Noviembre 2016.
[5] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
[6] SAMPAIO JR., Plínio de Arruda Sampaio. Globalização e reversão neocolonial: o impasse brasileiro. In: contrapoder.net.
[7] IANNI, Octavio. A era do globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
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