
O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Gilmar Mendes, sustentou, na decisão que derrubou a censura imposta pela justiça do Amazonas a matérias do jornal O Globo, que “possíveis fraudes e falhas graves” no estudo da proxalutamida “são de interesse público”. Por isso, “não podem ser objeto de censura”.
“As reportagens trazem informações sobre possíveis inconsistências nos estudos clínicos realizados com medicamento denominado proxalutamida para tratamento da COVID-19 (possíveis indícios de fraude e falhas graves na sua condução), que são dados de interesse público e não podem ser objeto de censura”, afirma trecho da decisão de Gilmar Mendes.
O jornal teve três reportagens sobre inconsistências e suspeitas de fraude em um ensaio clínico da proxalutamida para Covid-19 realizado no Amazonas censuradas por decisão do juiz da 3ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho de Manaus, do juiz Manuel Amaro de Lima.
No embate judicial entre O Globo e o grupo empresarial do Amazonas Samel, que conduziu os estudos, além da retirada das matérias do ar, publicação de notas com a versão da empresa sobre o assunto e aplicação de uma multa contra o jornal no valor de R$ 120 mil pelo magistrado, o juiz também determinou que O Globo se abstivesse de novas reportagens sobre os fatos.
A Samel sustentou ao juiz que o direito de resposta não havia sido respeitado. Já O Globo defende que acatou todas as decisões. Todas, no entanto, perderam a efeito após o caso chegar ao STF. O ministro Gilmar Mendes, ao analisar o recurso de O Globo, suspendeu a censura e afirmou que as matérias veiculadas seguiram parâmetros normais e que a decisão da justiça do Amazonas era “injustificável”.
“Na presente reclamação, entendo que a veiculação das matérias jornalísticas ocorreu dentro de parâmetros normais, de modo que a ordem judicial reclamada afigura-se injustificável à luz do direito fundamental à liberdade de expressão e de imprensa”, disse.
Gilmar Mendes reconhece que os “beneficiários” da decisão da justiça amazonense “dispõem de mecanismos legítimos para o exercício do direito de resposta”. No entanto, aponta como infundadas as interpretações de que as matérias jornalísticas censuradas tenham “acusações” ou “existência de ilícito contra a honra” dos mesmos.
“Contudo, não vislumbro, nas mencionadas reportagens “acusações”, tampouco a existência de ilícito contra a honra dos beneficiários, que, de toda forma, dispõem de mecanismos legítimos para o exercício do direito
de resposta.”
A liminar cabe recurso.
Interesses de determinados grupos X Interesse público
Entre as considerações que usa para derrubar a decisão do juiz amazonense, o ministro afirma que a Constituição de 1988 não admite prévia censura de títulos e assuntos que contrariem os interesses de determinados grupos.
“O que não pode haver, no modelo constitucional adotado pelo texto de 1988, é a prévia censura de títulos e assuntos que porventura desagradam ou contrariam os interesses de determinados grupos, impedindo a divulgação de fatos de interesse público”, afirma o ministro em outro trecho.
O ministro Gilmar Mendes diz que o juiz amazonense “afrontou” a decisão da Suprema Corte do País que garante a liberdade de imprensa.
“Assim, entendo que o Juízo reclamado, ao obstaculizar a divulgação da matéria jornalística, afrontou a decisão desta Corte formalizada na ADPF 130”, diz o ministro na decisão.
ADPF nº 130: “pensamento crítico e imprensa livre são inseparáveis”
Ao longo da liminar (decisão rápida e temporária) da Reclamação nº 49.506 de 11 páginas, o ministro Gilmar Mendes cita uma série de decisões anteriores do STF e a jurisprudência da Corte, que é de garantia da liberdade de imprensa e expressão como um dos direitos fundamentais.
Entre as quais está a ADPF (Arguição de descumprimento de preceito fundamental) nº 130/DF da relatoria do ministro Carlos Ayres Brito de 6 de novembro de 2009.
Nela, o STF apontou “relação de mútua causalidade entre liberdade de imprensa e democracia”. Também por meio do julgamento desta ADPF, o STF estabeleceu entendimento da inerência (coisas, por natureza, inseparáveis) entre o pensamento crítico e imprensa livre.
Também é consolidado no STF que a imprensa é “instância natural de formação da opinião pública como alternativa à versão oficial dos fatos”.
O ministro afirma que o STF tem o controle posterior do conteúdo veiculado que cometa excessos contrários à observância dos direitos de personalidade atinentes à intimidade, à vida privada, à honra e à
imagem. No mesmo parágrafo, destaca que, no entanto, é vedada a censura prévia e que a atividade jornalística é essencial ao desenvolvimento da democracia e que, para isso, é preciso dar garantias à liberdade da profissão.
A decisão de Gilmar Mendes afirma que a garantia plena da liberdade de informação e de imprensa só é integralmente preservada se não houver censura prévia.
Reclamação nº 22.328:
O ministro Gilmar também destaca a Reclamação nº 22.328 de relatoria do ministro Roberto Barroso de 10 de maio de 2018, que teve como base a ADPF nº 130. Nela, o STF reconhece que a cultura brasileira e o próprio judiciário “vulneram” (ofendem e atingem) a liberdade de imprensa de forma persistente. Por isso, “o Supremo Tribunal Federal tem sido mais flexível na admissão de reclamação em matéria de liberdade de expressão”.
Ainda segunda o precedente desta reclamação da relatoria do ministro Barroso, o STF tornou “excepcional qualquer tipo de intervenção estatal na divulgação de notícias e de opiniões”. Diz ainda a decisão que o julgamento da ADPF 130, o “STF proibiu enfaticamente a censura de publicações jornalísticas”.
A jurisprudência do STF entende que a liberdade de imprensa e expressão tem uma posição preferencial entre outros direitos fundamentais. Isso porque as mesmas são pré-condição para os demais direitos e liberdades.
“A liberdade de expressão desfruta de uma posição preferencial no Estado democrático brasileiro, por ser uma pré-condição para o exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades”, afirma trecho da ementa da reclamação nº 22.328.
,
TJ-AM
Procurado pela reportagem, o presidente do TJ-AM (Tribunal de Justiça do Amazonas), Domingos Chalub afirmou que sobre a liberdade de imprensa é “integralmente a favor” e de acordo com o que entende a Suprema Corte do País. Sobre o caso específico, disse que não podia comentar porque o mesmo pode chegar a ele para ser julgado no pleno do tribunal.
Samel
A reportagem solicitou resposta da assessoria de comunicação da empresa Samel sobre a decisão do ministro Gilmar Mendes, bem como sobre os posicionamentos do Conep, Unesco e relatório final da CPI da Covid a respeito do estudo da proxalutamida. Os pedidos foram encaminhados por e-mail e solicitados também pelo telefone 994XX-XX95. A assessoria informou que “logo mais” daria retorno, o que não ocorreu até o momento da publicação desta matéria.
CPI da Covid: estudo da proxalutamina é um dos crimes contra humanidade praticados no Amazonas
Presidente do TRE-AM usurpou competência do TSE em decisão que beneficiou Nicolau, diz ministro
Presidente do TRE-AM suspende decisão unânime do tribunal e beneficia Ricardo Nicolau