“Quem vai reparar os danos causados aos povos indígenas?”

Foto: Joenia Wapichana (Twitter)

Na semana que a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara Federal aprovou um dos maiores ataques aos povos indígenas dos últimos 30 anos e que indígenas em protesto pelos direitos garantidos na Constituição Federal foram recebidos com violência na casa legislativa, o mandato da deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR) foi exigido em todas as possibilidades simbólicas e técnicas. Única parlamentar indígena no Congresso e primeira mulher indígena eleita no País, Joenia tentou frear e dar visibilidade ao retrocesso.

A deputada protagonizou a resistência atropelada pela força da base bolsonarista na Casa, mas o projeto foi aprovado, nesta quarta-feira, dia 23, na CCJ por 40 votos a 21 com cenas de truculência. Dentro e fora da Câmara dos Deputados.

A tensão dos bastidores intensificou desde que a PL 490/2007 entrou na pauta de prioridade do Governo Bolsonaro no Congresso. Lideranças indígenas chegaram a Brasília uma semana antes dos acontecimentos. Protestaram em frente ao STF (Supremo Tribunal Federal), onde tramita outra pauta que ameaça os direitos sobre seus territórios, e acamparam em frente ao prédio de uma emissora de comunicação.

Joenia Wapichana se dividia entre as audiências e coletivas de imprensa com a presença de lideranças e as conversas com parlamentares e assessores na tentativa de agregar apoio para evitar o avanço do projeto no momento de maior calamidade sanitária do País.

“Não é momento para um mudança tão danosa (…) Num momento em que todo mundo deveria estar calmo em suas casas, dentro das terras indígenas está acontecendo o contrário. As pessoas estão invadindo, disseminando o coronavírus e colocando em risco a vida dos povos indígenas”, disse Joenia à reportagem.

Com os olhos atentos e grudados no celular e semblante tensionado, Joenia atendeu a reportagem da BandNews Difusora e do Blog da Rosiene Carvalho no salão verde da Câmara, onde relacionou os erros da tramitação do projeto que propõe alteração na Constituição Federal por meio de um Projeto de Lei e a política anunciada e executada pelo Governo Bolsonaro: “os indígenas não teriam vez”.

A parlamentar denuncia o desmonte da Funai (Fundação Nacional do Índio) associado a uma atuação de, ao invés de apoiar, criminalizar os indígenas que denunciam o que a fundação deveria fiscalizar. Joenia fala sobre os efeitos do incentivo de autoridades e da falta de fiscalização nas invasões de garimpeiros nas terras indígenas em plena pandemia. E constata que muitos estragos já são irreparáveis.

“Quem vai reparar esses danos que estão acontecendo?”.

Leia a entrevista abaixo ou assista no link:

PL 490

A PL 490/2007 tira do Executivo e transfere para o Legislativo o exercício da demarcação de terras indígenas. A PL atinge vários direitos dos povos indígenas, garantidos pela Constituição Federal, como o de usofruto das mesmas, além de restringir o direito à demarcação apenas aos povos que ocupavam os territórios reclamados anteriormente à promulgação da Constituição, em 1988. O mesmo questionamento é feito no recurso extraordinário que tramita no STF, previsto para ser julgado no próximo dia 30 de junho.

Se aprovado e sancionado pelo presidente, o PL 490 permitirá o efeito “passando a boiada”. Isso porque obras como hidrelétricas e rodovias poderão ser construídas em terras indígenas, sem necessidade de que estes povos sejam ouvidos. Além de possibilitar a mineração em terras indígenas com possibilidade de graves consequências ao meio ambiente e à cultura e vida destas populações.

Joenia Wapichana

Primeira parlamentar indígena eleita no País pelo estado de Roraima. Formada em Direito pela Universidade Federal de Roraima e mestre em Direito Internacional pela Universidade do Arizona.

“Não é o momento adequado na pandemia para fazer mudança tão danosa. Sistematicamente os povos indígenas vêm sendo atacados em seus direitos como também dentro de suas terras.”

Rosiene Carvalho (RC): Como a senhora classifica a conduta e a atenção do Governo Federal aos povos indígenas?

Joenia Wapichana: Esses últimos anos têm sido de bastante retrocesso. Esse governo já adiantou que no governo dele não entraria a pauta indígena, no sentido de não ter vez. Em Roraima, ele declarou que ia rever demarcação de terras. Então, já era aguardado que não teria atenção especial aos povos indígenas. A gente está tendo a certeza, quase todos os dias, quando a gente vê uma proposta do governo ser pautada aqui…

Agora mesmo, acabamos de sair da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) e tem o PL 490, que é defendido pela base do governo e também pelo agronegócio, que faz a disputa sobre os direitos dos povos indígenas à demarcação das terras. A demarcação é direito fundamental, de acordo com a nossa Constituição, que garante o direito originário, uso fruto exclusivo, a posse permanente, a indisponibilidade, inalienabilidade. São os princípios que regem os direitos dos povos indígenas.

E a gente vê a todo tempo propostas para mudanças desses direitos. Inclusive, propostas que até mesmo de forma errada que veio por meio de lei ordinária que não é a medida apropriada para mudar direitos constitucionais. Então, a gente vive pedindo para tirar de pauta. Dizendo que não é o momento adequado na pandemia para fazer mudança tão danosa.

Sistematicamente os povos indígenas vêm sendo atacados em seus direitos como também dentro de suas terras. A gente vê hoje várias publicações como, por exemplo, lá na Área Yanomami sendo invadida por garimpeiros. Uma área Munduruku no Pará da mesma forma. Confronto com pessoas que estão defendendo garimpo. E garimpo é crime.

“Num momento em que todo mundo deveria estar calmo em suas casas, dentro das terras indígenas está acontecendo o contrário. As pessoas estão invadindo, disseminando o coronavírus e colocando em risco a vida dos povos indígenas”

RC: Aumentaram os ataques, neste período?

Joenia Wapichana: É intenso, realmente, num momento que todo mundo deveria estar calmo. o momento que a gente teria que estar calmo, todo mundo tranquilo em suas casas, se preservando da contaminação. Dentro das terras indígenas, está acontecendo o contrário. As pessoas estão invadindo, disseminando o coronavírus e colocando em risco a vida dos povos indígenas.

RC: Qual sua impressão? A demanda nunca foi tão grande?

Joenia Wapichana: A demanda é muito grande e todos os dias temos ataques aos povos indígenas.

“Quem vai reparar esses danos que estão acontecendo?”

RC: Como a senhora se articula para atender essas demandas? Aqui no Congresso, a senhora recebe apoio dos parlamentares da Amazônia? Os parlamentares do Amazonas apoiam estas demandas?

Joenia Wapichana: Olha, são de diversas partes. São de oposição, mas de alguns outros partidos. Alguns parlamentares tem a consciência que os direitos dos povos indígenas são considerados fundamentais, sagrados, cláusulas pétreas e merecem esse respeito. Agora, (há) realmente uma dificuldade muito grande nessa conjuntura e legislatura ter a maioria porque temos a postura de defender qualquer processo contra a política negacionista do Governo Bolsonaro. Muita gente, às vezes confunde política de governo com política de estado. O direito dos povos indígenas a viver, à diversidade cultural precisa ser compreendida como uma política de estado e com direitos constitucionais. Por isso, a gente vive sensibilizando os meios de comunicação.

Todo dia é uma luta constante. Tentar colocar isso para a imprensa, esclarecer que não é dessa forma que vai resolver problemas sociais de garimpeiros. Dos que acham que é a vontade dos indígenas terem seus direitos, sua estabilidade (liberando garimpos). O que a gente vê é mais prejuízo do que economia para os povos indígenas. Porque vão morrendo pelo conflito, as águas vão sendo contaminadas pelo mercúrio. Havendo conflitos internos e de fora para dentro. Situações de violência, como vemos acontecer na Área Yanomami. Inclusive duas crianças se assustaram com o conflito pularam no rio e no outro dia foram encontradas mortas. Par você ver, quem vai reparar esses danos que estão acontecendo?

A única proposta que se vê e falam: “ah, vamos regulamentar a mineração, assim resolve o problema”. Não resolve. A gente sabe que a mineração, já teve exemplos em Mariana e Brumadinho, que não tem fiscalização. Aconteceu o desastre ambiental e não foram até hoje reparados. A gente tem já isso de fato e a regulamentação da mineração não é a solução.

Não é uma responsabilidade só minha e dos povos indígenas. É uma responsabilidade do País.

RC: Qual perda para a região de ter parlamentares que não têm identificação com as questões da Amazônia? A senhora fica isolada?

Joenia Wapichana: Eu tento chamar atenção dos parlamentares. Não é uma responsabilidade só minha e dos povos indígenas. É uma responsabilidade do País. Os povos indígenas têm feito seus trabalhos milenarmente São povos que mantém o manejo tradicional, sustentável. A cosmo visão que se tem do mundo, da natureza é uma visão considerada importante para combater os efeitos das mudanças climáticas. Estão referendando produtos orgânicos e isso é prática dos povos indígenas há muito tempo.

O respeito ao meio ambiente, a mudança do comportamento humano para manter a floresta em pé. Então, são valores que os povos indígenas mantêm. O mundo todo está prestando atenção a seguir por essa linha. Acredito que, mesmo sendo uma só, a gente consegue chamar atenção, buscar apoio por essa causa tão importante e que não é somente dos povos indígenas. É do País todo.

“Cada vez mais a Funai se encontra desmantelada na sua estrutura e recursos humanos. (…) Mas também pela política que tem levado, considerando lideranças indígenas como inimigas. Ao invés de apoiar, buscam criminalizar”

RC: Qual sua avaliação da Funai, que deveria defender os interesses dos povos indígenas?

Joenia Wapichana: A Funai é um órgão importante. Ela deveria estar defendendo os direitos dos povos indígenas. Mas os últimos atos da Funais são questionados. Não está cumprindo sua missão institucional, que é defesa e proteção. Uma que à Funai não tem sido dada a devida importância pelo próprio governo que constantemente tem reduzido o orçamento da Funai para que não haja fiscalização, monitoramento. Cada vez mais a Funai se encontra desmantelada na sua estrutura e recursos humanos. Isso faz com que se impeça a realização de serviços.

Mas também não é somente isso, pela inação. Mas também pela política que tem levado, considerando lideranças indígenas como inimigas. Ao invés de apoiar, buscam criminalizar como o caso da Sônia Guajajara e Almir Suruí, que foram para fora do País, na ONU denunciar a situação dos povos indígenas. E o que receberam? Um pedido da Funai para que houvesse investigação por difamação e calúnia contra o governo. Se eles estão denunciando uma situação que deveria ser investigada pela própria Funai. A gente está vendo uma inversão de missões institucionais.

RC: Como está  o processo de aliança dos indígenas para enfrentar os ataques às suas comunidades?

Joenia Wapichana: Processo de aliança? Estão aqui em frente da Câmara se manifestando. Essa aliança já é real. Se você for em frente ao anexo 2, vai ver que tem vários povos indígenas, de diferentes lugares, protestando, contra o desmonte dos direitos constitucionais.

“Meu mandato é diferente porque traz uma pauta que não é vista aqui. É uma pauta que traz a voz dos povos indígenas”.

RC: Qual sua avaliação sobre o seu mandato como mulher indígena?

Joenia Wapichana: Acho que meu mandato era necessário para uma legislatura que está tão difícil, sendo atacada nos seus direitos constitucionais. Eu sou uma voz diferencial e meu mandato é diferente porque traz uma pauta que não é vista aqui: é uma pauta que traz a voz dos povos indígenas. Simbolicamente é muito importante. Mas também tecnicamente. Eu tenho proposto e defender matérias tecnicamente, tenho como propor matérias, me manifestar, defender.

Tecnicamente não é somente um mandato para se ver, mas também para utilizar. É um mandato que traz uma opinião, uma proposição e manifestação, de acordo com as questões parlamentares. É possível fazer isso, graças a esse mandato. É um mandato coletivo, que se organizaram no estado de Roraima. Me indicaram e fizeram com que que participasse desses encontros políticos.