Sob o olhar trágico da preguiça

Foto: reprodução redes sociais

*José Alcimar

01. Hoje, num vídeo que circula nas redes sociais, uma Preguiça é salva do trânsito por um motorista. Ela parece agradecer. Se é permitida a leitura antropomórfica, há mais tristeza que agradecimento no gesto animal da preguiça que, impotente, vê seu território invadido pela velocidade insana dos automóveis que, com os celulares, estão entre os mais desejáveis ícones de consumo da barbárie erguida pela (in)civilização do capital. Meu carro (ou celular), meu ser.  

          02. Num texto incompleto, nunca publicado em vida e escrito em sua juventude, em 1844, conhecido como Manuscritos de Paris, também Manuscritos econômico-filosóficos, cuja publicação somente ocorrera na década de 1930, na então URSS, o jovem Marx antecipa: dizer que o homem se relaciona com a natureza é o mesmo que dizer que o homem se relaciona consigo mesmo, pois ele é parte da natureza.

          03. O filósofo francês Edgar Morin, nascido em 1921, vivo e jovial, reconhece que nós somos 100% natureza e 100% cultura. Como estabelecer fronteira nessa unidualidade (conceito do meu amigo Edgard de Assis Carvalho)? Quem agride a natureza agride a cultura.

          04. Nesse 02 de novembro de 2020, celebra-se ou se rememora o dia dos mortos. No México: Fiesta de los Muertos, celebração cristianizada, mas de origem indígena. Baseado no romance de Malcolm Lowry, À sombra do vulcão (Under the volcano), o filme homônimo de origem mexicano-estadunidense, do grande diretor John Huston, transcorre inteiro ao longo desse dia no interior do México de Cuernavaca, em 1938.

          05. Nesse dia, em que passado, presente e futuro se conjugam de forma intensa, de compressão trágica e alegre descompressão, sela-se a existência – numa épica combinação de vida, decadência, festa, bebida e morte – do então aposentado Cônsul britânico da cidade de Cuernavaca, Geoffrey Firmin. Na condição ébria do herói do filme podemos entrever a insanidade com que o capitalismo destrói na América Latina o que o Mouro de Trier denomina de as duas fontes de toda riqueza: terra e o homem.   

          06. Pelo México de À sombra do vulcão, a um só tempo trágico e irredento, podemos ler nossas entranhas ontológicas de uma América Latina em que a alma viva e alegre da rica constelação dos povos indígenas luta contra as forças da colonização que continua a nos impor um presente sem futuro.  Na introdução ao romance, Stephen Spender afirma que “ele integra o trágico fatalismo do México (o índio moribundo sem ajuda, o despojador do cadáver triunfante) com a própria situação do Cônsul, sua cabeça cheia de uma culpa preocupada em saber onde conseguirá o próximo drinque, seus companheiros envolvidos numa relação que o exclui.

Como o esquema joyceano das andanças matinais de um caixeiro-viajante através de Dublin, o germe de Ulisses, a história algo esquemática de Lowry tornou-se uma obra-prima”. O indígena assassinado e em seguida assaltado nos remete às Teses de Walter Benjamin quando afirma que nem os mortos estarão em segurança se esse inimigo vencer.

          07. A resistência indígena, sempre fora do foco das corporações mediáticas da autocracia burguesa, nos indica, como agora ocorre na Bolívia, a força do que Agnes Heller denomina de “invencibilidade da substância humana” ou ressurreição para os cristãos, sobretudo os cristãos seguidores do Caminho que liga a mal afamada Nazaré de Jesus da Galileia à indígena São Félix de Casaldáliga, o Pedro do Araguaia.

Somente elaborado como esclarecimento é que o passado – para concluir com Adorno – pode fortalecer as lutas do presente.

* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, na Fiesta de los Muertos, no dia 02 de novembro do ano coronavirano de 2020.