
*José Alcimar de Oliveira
01. Em grego há pelo menos três conceitos para a palavra amor. Eros (amor passional, erótico), Philia (amor como amizade, cultivo) e Ágape (amor comunitário, comunhão, solidariedade, caridade – caritas em latim).
Jesus de Nazaré materializou essa terceira forma. O hino de São Paulo registrado em Cor 13,1-13 é, seguramente, a mais bela expressão do amor agápico.
02. Hoje, numa cultura presidida pelo sociometabolismo do capital, o amor é prevalentemente reduzido ao sentimento de posse. A posse é um sentimento intrinsecamente egoísta.
É uma relação que sempre carrega algo de patológico: só temos o que possuímos ou julgamos ter. É uma relação mobilizada pela satisfação narcísica produzida, como afirmava André Gide, pela posse sempre falsa do objeto do desejo.
03. O velho Marx, que nunca foi dado a derramamentos sentimentais, afirma num texto incompleto, escrito em sua juventude e só postumamente conhecido em 1932: “a propriedade privada nos fez tão cretinos e unilaterais que um objeto somente é o nosso (objeto) se o temos, portanto, quando existe para nós como capital ou é por nós imediatamente possuído, comido, bebido, trazido em nosso corpo, habitado por nós etc., enfim usado”.
O Mouro de Trier abriu portas, inclusive para a Psicanálise.
04. A atual sociedade de consumo, nem de longe comensurável ao capitalismo do século XIX objetivado por Marx, leva ao paroxismo o processo de cretinização das relações sociais por meio da unilateralidade empobrecedora a que é reduzida a riqueza do que o Mouro denominava de nossa natureza humanamente genérica.
A gramática do capital para se realizar tem que promover e delimitar a (de) formação humana pela via da unilateralidade. O trabalhador se desumaniza na produção humanamente improdutiva. Não se produz senão como objeto para produzir mercadorias a que não tem acesso.
05. Para o sistema do capital, o ser social só existe enquanto consumidor. Não há nada de mais individual e egoico do que a relação de consumidor. Segundo registros da época, Sócrates, cidadão ateniense e declaradamente pobre, costumava a cada dia bater perna pelo mercado de Atenas. Era o shopping center da época.
Uma vez abordado por um cidadão, talvez de posses e incomodado com a presença de Sócrates, que nada comprava, foi assim interrogado: por que, ó Sócrates, sujeito monetário sem dinheiro que és, vens diariamente ao mercado? Ao que respondeu o Sábio: para exatamente ver as coisas de que não necessito para viver.
06. Diógenes, o mais genial dos cínicos, de linhagem refratária ao cinismo de baixa extração, tinha por hábito para contestar o modo de vida hipócrita da elite de sua época, pedir esmola aos postes. Ao ser questionado por essa atitude, respondera: – Se o fizesse aos humanos a resposta seria igualmente negativa.
A lição mais eloquente para quem deseja aprender que o necessário não é excesso e de que nada falta a quem tudo tem, nos é dada por aqueles povos indígenas que ainda mantêm um modo de vida não de todo agredido e condicionado pelo sociometabolismo da posse capitalista.
Para o bem viver indígena a natureza não é objeto, menos ainda objeto de posse. Tudo tem porque nada possui.
07. Sócrates, Jesus, Paulo e Marx, cada um em seu estilo e todos livres do espírito da posse, materializaram na teoria e na prática o sentido maior da forma agápica do amor, hoje reduzido pela venalidade do sistema do capital ao pobre ideal da posse.
Esse quarteto, ideologicamente constituído por sujeitos sociais historicamente distintos, mas unidos pela solidariedade aos subalternizados, dificilmente encontrará abrigo no modus vivendi burguês, inseparável da miséria da posse.
Se alguém deseja, pela rica mediação da literatura, saber como se conjugam as três características e os três ideais da burguesia, ou seja, como se constrói um burguês, o grande Carlos Nelson Coutinho nos sugere a leitura de São Bernardo, de Graciliano Ramos, por meio da ascensão em ritmo linear de Paulo Honório: ação transformadora, velocidade enérgica e posse total. Solidariedade, nenhuma. Crueldade, toda.
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 12 de junho do ano coronavirano de 2020.