No momento em que o Amazonas completa um ano da explosão de mortes na segunda onda da covid-19, parte do gatilho que causou o caos e colapso do sistema de saúde volta a ser ativado. Desta vez, contra os direitos das crianças e adolescentes.
A pressão sobre o desestruturado sistema de saúde do estado e a incompetência das autoridades sanitárias e de saúde em todas as esferas começou com a resistência de movimentos políticos que incentivaram as pessoas a negarem as medidas orientadas pela ciência e pelas autoridades técnicas no assunto diante do aumento de ocupação de leitos, em dezembro de 2020.
De acordo com dados da FVS (Fundação de Vigilância e Saúde), as crianças não foram poupadas pela covid-19: 2.340 agravaram a ponto de necessitarem ser internadas e 127 não resistiram ao vírus e morreram. Ainda segundo a FVS, as crianças hospitalizadas e as que morreram sentiram, em decorrência da covid-19, febre, tosse, desconforto respiratório, dispneia, vômitos, entre outras consequências provocadas pelo agravamento da doença.
O presidente Jair Bolsonaro (PL), que tem sigilo de 100 anos sobre sua carteira de vacina e todos os demais membros da família vacinados, puxou mais uma vez o bonde. No dia 6 de janeiro, logo após a Anvisa autorizar a vacinação de crianças entre 5 e 11 anos criticou a medida, levantou dúvidas sobre a vacina e exortou pais a não seguirem a recomendação.
“A Anvisa, lamentavelmente, aprovou a vacina para crianças entre 5 e 11 anos de idade. A minha opinião, quero dar para você aqui: a minha filha de 11 anos não será vacinada (…) Eu pergunto: você tem conhecimento de uma criança de 5 a 11 anos que tenha morrido de Covid? Eu não tenho. Na minha frente tem umas 10 pessoas aqui, se alguém tem levante o braço. Ninguém levantou o braço na minha frente. Então, converse, vê se é o caso de você vacinar o teu filho ou não. É um direito teu vaciná-lo, está autorizada a vacinação e ela é voluntária.”, declarou em entrevista à rádio Nova de Pernambuco.
A ativação da corrente antivacina seguiu mesmo protocolo de todas as outras “polêmicas” levantadas pelo presidente Bolsonaro: disseminação de desinformação sobre a vacinação de crianças em redes sociais, espaços na mídia e defesa deste conteúdo por parte de políticos bolsonaristas em nível federal e estadual no espaço público e institucional.
Alguns com informações escrachadamente mentirosas sobre a vacina e outros tentando dar um viés jurídico para o posicionamento que atrai o olhar do eleitorado bolsonarista. Na ALE-AM, de forma errada a vacina foi chamada de “experimental” pelo líder do Governo Wilson Lima, deputado estadual Felipe Souza.
A declaração dele contraria o entendimento da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que cumpriu protocolos de análises e estudos para autorizar de sua aplicação no País e já esclareceu que o termo é incorreto e não aplicável porque as vacinas foram testadas, são confiáveis e seguras.
A Anvisa também já reforçou que as pessoas não estão sendo tratadas como cobaias e que as vacinas estão sendo usadas com resultados positivos de forma emergencial. O fato é que as mortes diminuíram, bem como o potencial de agravamento e ocupação de leitos por causa da vacina, mas a desinformação não.
O deputado estadual Delegado Péricles (União Brasil) apresentou um projeto de lei contra obrigação de vacinar crianças, logo após a Prefeitura de Manaus decidir cobrar a carteira para a entrada de alunos na rede municipal. Ele já tomou duas doses para se proteger da Covid e é presidente da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da ALE-AM. É formado em Direito e disputa em 2022 a reeleição.
Ao contrário do que defendem os bolsonaristas, o debate sobre os “direitos dos pais” e sobre a vacinação não ser obrigatória não encontra amparo no texto constitucional e nas legislações vigentes no País. De acordo com o advogado, professor da pós-graduação da Ufam e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, Yuri Dantas Barroso, além de não ofender a Constituição, a exigência do passaporte vacinal realiza um dos ideais constitucionais que é a garantia da preservação da saúde como direito de todos.
O defensor público e professor Helon Nunes afirma que a vacinação é a regra e que a legislação no Brasil, e em todo o mundo, não discute direitos e sim deveres dos pais em relação aos filhos.
“Sempre tivemos essa ideia: o filho é meu e eu faço dele o que eu quiser. Mas precisamos compreender que não há uma relação, juridicamente falando, constitucionalmente falando e historicamente falando. Hoje, em nenhum lugar do mundo se fala em direito dos pais em relação aos filhos no tocante à saúde, mas, sim, um dever dos pais, da sociedade pela efetivação do direito à saúde”.
Sobre a não inclusão, por decisão do Governo Bolsonaro, da vacina da Covid no Plano Nacional de Imunização e sim no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra Covid, Helon Nunes e Yuri Dantas afirmam que nada impede municípios e estados de classificarem a vacina como obrigatória e exigirem o cumprimento desta obrigatoriedade.
Acompanhe o episódio do Exclusiva gravado durante entrevista conduzida pelos jornalistas Rafael Campos e Rosiene Carvalho na rádio BandNews Difusora:
Frases de destaque de Yuri Dantas Barroso
“A exigência do passaporte vacional não ofende a Constituição de maneira alguma, na verdade realiza mais um dos ideais constitucionais que é a preservação da saúde pública como direito de todos”
“Os pais não são donos dos filhos. Eles não podem impor sua vontade de maneira a violar os direitos que essas crianças detém. Isso, inclusive, ficou posto na discussão travada pelo STF no agravo de recurso extraordinário 12679. Isso está posto no voto do ministro Luís Roberto Barroso. Essas crenças religiosas, filosóficas e etc professadas pelos pais não podem ser impostas às crianças. Os pais têm o dever de proteger as crianças. Esse dever é completamente diferente de um direito que o sujeito ache que tenha de propriedade sobre os filhos”.
“Não há dúvidas que a vacinação é obrigatória. A lei que estabeleceu as medidas de enfrentamento, a 13970 de 2020 estabelece que a vacinação é compulsória – embora o STF tenha afirmado depois que essa compulsoriedade não existe, o que existe é a obrigatoriedade. Se de repente o sujeito decidir não se vacinar há daí uma circunstância. Se trata de um dever jurídico e, portanto, descumprido esse dever jurídico existe consequências. O ECA afirma que a vacinação de crianças é obrigatória, se ela for inserida no plano nacional de imunização.”
“Não há dúvidas que a vacinação contra a covid, ela é obrigatória e que, ao escolher não se vacinar porque ninguém vai pegar o sujeito e enfiar uma agulha no braço dele, isso tem uma consequência. Essas consequências são várias. Isso não é nem incomum. No Brasil, temos várias obrigatoriedades que se agente não cumprir a gente sofre as consequências. Por exemplo, a gente é obrigado a votar. Ninguém vai lá pegar você dentro de casa e fazer você chegar numa seção eletoral para votar. Mas você sofre consequências por não ter votado”.
Frases de destaque de Helon Nunes
“A Constituição, quando se refere às crianças, ela não dá um direito aos pais. Pode até ser doloroso para os pais. Temos aquela tendência (de pensar) que o nosso filho vai torce para o nosso time, gostar da comida que gostamos, ter a mesma religião que nós temos. Mas, na verdade, a criança é reconhecida no mundo, há aproximadamente cem anos, com um sujeito de direitos. Quando o artgo 227 se refere à criança, ele impõe um dever da família, um dever do estado e um dever da sociedade.”
“Então, para começo de conversa, é preciso alertar: inexiste, no tocante sobretudo à saúde, o direito do outro a interferir na saúde alheia. Então, precisamos susperar essa ideia ainda que existe, que não foi esclarecida. O papel do pai, em relação ao filho, é compreender que a criança é um sujeito de direitos e, sem qualquer distinção, ela tem direito à saúde. E o pai, a famíia e a sociedade têm o dever de estabelecer estes cuidados e procurar efetivar o direito de saúde, educação, lazer, convivência familiar e comunitária”.
“Sempre tivemos essa ideia: o filho é meu e eu faço dele o que eu quiser. Mas precisamos comprender que não há uma relação, juridicamente falando, constitucionalmente falando e historicamente falando,. Hoje, em nenhum lugar do mundo se fala em direito dos pais em relação aos filhos no tocante à saúde, mas, sim, um dever dos pais, da sociedade e família lutar por efetivação do direito à saúde.”
“E por que está na Constituição: porque negros, mulheres e crianças não foram vistos como sujeitos de direitos.”
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