Foto: Professora indígena Cláudia Baré (Raphael Alves)
*Cláudia Baré
20 março 2022. O primeiro caso oficial de covid-19 era registrado em Manaus. Dois anos depois, eu pedagoga indígena Etnia Baré Ana Claudia Tomas, relato como tem sido viver o caos, a insegurança e as perdas da pandemia na cidade de Manaus que foi o epicentro da doença na Amazônia.
Em 2020, logo no primeiro momento nem sabia se o vírus nos chegaria e o que era uma pandemia. Mas, pelas notícias que chegavam de fora e pela proporção que a situação estava tomando, foi fácil entender o que significava.
O primeiro caso oficial do novo coronavírus, porque covid-19 ainda era uma palavra muito difícil, foi confirmado em Manaus no dia 13. Era uma mulher de 39 anos, recém-chegada de Londres, Inglaterra. Oficialmente, ela não foi um quadro grave, teve sintomas leves e logo se curou.
Poucos dias depois, na noite do dia 24, chegou a notícia da primeira morte. Um morador de Parintins, município no interior do Amazonas, que tinha vindo para um evento de pesca em Manaus e voltado contaminado à sua cidade. Dias depois, ele foi transferido em estado grave e morreu no Hospital e Pronto-Socorro Delphina Aziz.
No dia em que o primeiro caso foi anunciado em Manaus, não imaginávamos que poderíamos ser contaminados, e com a movimentação de entrada e saída de pessoas no Parque das Tribos, primeiro bairro indígena de Manaus, para irem aos seus trabalhos, não demorou muito para que começassem a surgir os primeiros rumores de pessoas infectadas com o vírus da covid-19.
E eu e aminha família fomos infectados aqui no Parque das Tribos e a gente não sabia porque, naquele momento, não existia material especifico para fazer exames, identificar o vírus e provar que realmente estávamos infectados pela covid-19. Percebemos que o coronavírus era uma doença mais séria e grave que a gripe e estávamos com os sintomas que os médicos e os cientista relatavam.
Ficou muito difícil para a gente, pois os governos foram fazendo os decretos proibindo que a gente saísse de casa e nos privando de nossos afazeres cotidianos. Para mim, aos 41 anos, foi muito estranho por que eu já tinha ouvido e visto isso na época do vírus H1N1. Por meio de noticiários, eu já recebi a orientação de permanecer em casa e assim fiz. Meu trabalho entrou em home office.
Nesse intervalo, eu e meu companheiro Joilson Paulino Karapãna sentíamos o agravamento da doença em nossa casa, perdemos o paladar, o olfato, muita dores no corpo, frio, cansaço, foi muito difícil porque éramos os esteios da casa e também um do braços da administração dos trabalhos no Parque das Tribos.
Foram momentos, dias cruciais para mim e para minha família. Manaus era o epicentro da pandemia e não existia um tratamento especifico e nem cura do vírus. Peguei um chuvisco de chuva e agravou os sintomas na minha saúde. Fiquei acamada por mais de sete dias com graves sintomas de respiração, dores abdominais, febre alta, e, como eu e meu companheiro temos amigos e colegas médicos que trabalham em hospitais, meu companheiro entrou em contatos com eles que vieram fazer a visita em nossa casa para avalição preliminar dos sintomas.
Queriam nos levar pra notificação e internação imediata naquele momento da crise da saúde, e como nós somos pais de crianças, tomamos a decisão de fazer tratamento em casa. Dois dos nossos filhos são pequenos, um de 03 anos, a Sofhie Tomas, e o meu filho Joilson Wakenai, que está tinha 08 anos.
Muitas pessoas estavam e morreram aqui em Manaus, meu cunhado faleceu, na primeira onda da pandemia, teve parada de insuficiência aguda respiratória. As aulas foram suspensas. Desde então, a vida congelou em casa, onde moro com os filhos e companheiro. E, se fosse para eu ser levada a um hospital e ficar isolada, sofrer uma morte assistida, eu preferia ficar em minha casa, junto com a minha família. Se fosse para morrer naquela época, que fosse em casa com meus filhos e família.
Muita coisa mudou, mas pouca coisa evoluiu.
De uma hora para outra tivemos uma explosão de casos. Muita gente, mas muita gente mesmo, contraiu o novo coronavírus. Foi justamente nessa época que a Fiocruz Amazônia identificou a circulação da variante P1 na cidade. Não demorou para a situação começar a repercutir nos hospitais que, lotados, entraram em novo colapso em menos de um ano.
Era uma tosse que não passava. Ingenuamente, nós achávamos que tinha a ver com a chuva, pois desde outubro chove muito em Manaus. Não. A tosse só fez piorar, depois veio a fraqueza, vômito, irritação intestinal, falta de apetite, calafrios, febre…foram mais ou menos 15 dias de cama.
A covid-19 tinha entrado de novo na nossa casa e a gente não sabia como. Somos sobreviventes. Naquela época tudo ficou difícil, não tínhamos água encanada. Fechou tudo, os eventos culturais, UBS, UPAs, hospitais lotados, pessoas contaminadas. Entre abril e maio, eu achava que muita gente estava infectada. Praticamente todos os meus amigos pegaram covid-19.
Conto nos dedos aqueles que disseram que não tiveram sintomas ou a doença. Sabíamos muito pouco sobre ela, no início, e uma orientação da FVS (Fundação de Vigilância em Saúde) era que não usássemos máscaras, para evitar a autocontaminação e a falta do item no mercado.
Logo isso foi revisto e todo mundo passou a usar máscaras.
Nesse momento, tivemos que nos reinventar para que sobreviver na pandemia, juntamos forças para fazer articulação para que o poder público atendesse o Parque das Tribos com o envio de uma UBS móvel para fazer a triagem da contaminação da covid-19 dentro do Parque das Tribos.
Eu e meu companheiro, que é liderança indígena, fizemos e buscamos ajuda para os familiares indígena com risco social de vida. Articulamos arrecadação de cestas básicas, kits de higienes pessoal, com os parceiros como a fundação do projeto VIDAS INDIGENAS IMPORTAM, OIM, FIOCRUZ. SEMSA, HOSPITAL DE CAMPANHA, e muito outras parecerias que somaram para a resistência da vida indígena do Parque da Tribos.
Eu, Cláudia, tive que reinventar formas de gerar renda para ajudar as artesãs. Tive a ideia de fazer as máscaras de pinturas de grafismos para confeccionar e serem distribuídos para outras comunidades nas calhas do rio Eineiuxi. Não foi fácil para mim e nem para o povo indígena que mora no Parque das Tribos.
Não tardou muito, a pandemia começou a se materializar novamente em imagens chocantes com a segunda onda da contaminação. Eu com meu companheiro Joilson Karapãna tivemos novos sintomas de gripe, no primeiro momento pensamos que fosse apenas uma gripe comum.
Teve um dia, pessoas de todas idades e em todas as condições (até mães com crianças) se aglomerando debaixo do sol do verão amazônico, aguardando para receber algum dinheiro do auxílio emergencial. Os enterros em valas coletivas, cavadas com retroescavadeiras, corpos aguardando remoção dentro das UTIs e câmaras frias nas áreas externas dos hospitais completaram o cenário de terror.
Para falar a verdade, o que vivemos entre dezembro 2021 de janeiro de 2022 até me fez esquecer o que vi em abril e maio de 2020. Depois que a primeira onda “passou”, a maior parte dos manauaras esqueceu o que aconteceu e retomou a vida praticamente normal. Repetiam “Ah, mas todo mundo já pegou! Já estamos praticamente imunizados aqui”, “Manaus venceu o vírus”, ignorando a covid-19. O discurso estava embasado na famigerada teoria da imunidade de rebanho ou imunidade coletiva.
E sim, a vida meio que voltou ao que era antes. Revi alguns amigos pessoalmente, saía algumas vezes, mas sempre evitando locais fechados ou com muita gente.
Com a chegada do fim do ano e todo aquele clima de Natal e Ano Novo, as pessoas ficaram eufóricas, o comércio animado para faturar e as pessoas pareciam ter perdido a noção do perigo. Teve confraternizações, centros comerciais lotados… aí começaram a surgir mais casos e internações.
A essa altura, já estávamos sob restrições mais severas, mas a maioria das pessoas estava mais preocupada com o impacto econômico da pandemia. Isso resultou em manifestações de rua que obrigaram o governo a recuar e flexibilizar as regras que nem eram tão rígidas assim. No auge do desespero, fomos atrás de atendimento médico, em uma UBS (Unidade Básica de Saúde) e em um hospital estadual.
Foto: Professora indígena Cláudia Baré (Álbum particular)
A covid-19 passou hoje estamos bem de saúde. Mas nunca vou esquecer da sensação de estar no olho do furacão. Achava que minha família estava protegida, porque tomávamos todas medidas para evitar a infecção, mas de repente nos vi igual a todo mundo: indo às farmácias lotadas, usando duas máscaras e face Shields, atrás de termômetro, oxímetro e testagem.
Perdi muita gente querida, de amigos a conhecidos que vão fazer falta ao mundo, gente que eu admirava muito. Mas as perdas não pararam, quase todo dia morre algum conhecido e junto com ele morre um pouco do mundo que eu conheço (ou conhecia) também.
É muito doloroso passar perto do Cemitério do Tarumã, na zona Oeste de Manaus, o cemitério público que mais recebe sepultamentos na cidade. As pessoas que não podem entrar para acompanhar as cerimônias lotam as grades do local com homenagens aos entes queridos, com coroas de flores, fitas, cartazes. Quando o Cacique do Parque das Tribos faleceu fomos lá e tinha uma fila de mais de um quarteirão de carros enfileirados esperando a vez dos enterros.
Outra vez, no espaço de 15 minutos contei oito, isso mesmo OITO, cortejos fúnebres, com filas e filas de veículos, seguindo em direção a esse cemitério para a despedida de pessoas que tinham uma história, que vão fazer falta para outras pessoas. Não dá pra não chorar ou ficar angustiada ouvindo a sirene dos carros das funerárias.
Em de janeiro, Manaus parou de respirar. Foi o dia que acabou oxigênio nos hospitais públicos da cidade, o dia da asfixia. Uma verdadeira demonstração de descaso e falta de humanidade. Naquele dia, famílias foram destruídas, vidas mudaram para sempre. Imagina a revolta que é saber que sua mãe, seu pai, seu filho, um amigo, seu amor, um dos seus avós, pessoas queridas morreram asfixiadas?
Naquele momento, TODOS os hospitais da cidade, públicos e particulares, estavam colapsados.
Ninguém nos deu, ainda, uma explicação, uma justificativa ou fez um pedido de perdão. Nada.
Os hospitais continuavam muito cheios em Manaus. A situação requeria e requer muita atenção e cuidado, mas, infelizmente, parece que o manauara está se adaptando a essa vida. Eu não percebo mais ninguém com a apreensão que a pandemia pede.
Acho que isso se deve à normalidade com que as autoridades tratam a situação. Ver o presidente da República esnobando o novo coronavírus e o governador não chamar lockdown de lockdown, deixa as pessoas tranquilas. Parece que está tudo sob controle, mas não está.
A gente tem que dar os nomes certos às coisas por uma questão de honestidade. A vacina chegou e trouxe um pouco de alívio à tensão do confinamento. Pelo menos agora a gente espera ter menos chances de morrer de covid-19.
Os idosos da minha família já não aguentam o isolamento.
Foto: Professora indígena Cláudia Baré (Raphael Alves)
Meu pai faleceu em meus braços e na hora de sua partida pediu para eu continuar sua a luta que ele iniciou. Muto dos meus conhecidos com sequelas dizem que não conseguem mais andar direito. “Vivo dentro de casa, trancado. Tô até com dificuldade de ouvir e enxergar, porque não converso e não vejo mais meus amigos”, dizem. Por outro lado, minha mãe, que adorava passear por aí e viajar diz que não sabe se quer retomar a atividade. “Morreu muita gente, acho que mais da metade dos meus colegas”.
A gente vai precisar se adaptar ao que restou dos nossos mundos.
Acredito que o Amazonas ainda vai conviver por um tempo com a covid-19. Mas espero que na próxima crise sanitária, o estado não tenha que enterrar mais de 11 mil pessoas para aprender a lição. E, também, que não seja necessário testemunhar o adoecimento e todas as consequências de uma doença na vida de pessoas.
Nada justifica e nem explica a desumanização e crise humanitária que foram impostas à população de Manaus. A pergunta que fica é: quantas vezes vamos ter que viver isso? Somos indígenas um povo sobrevivente e resistente…
*Cláudia Baré, professora e liderança indígena
Cláudia Baré e as máscaras de pano com grafismo indígena confeccionadas por ela como incentivo à alternativa de renda de mulheres artesãs indígenas
Máscaras de pano com grafismo indígena feitas durante a pandemia como alternativa de renda de mulheres artesãs indígenas