
A um mês da previsão de retorno dos estudantes da rede particular de ensino do Amazonas às escolas, o diretor-presidente da FMT-HVD (Fundação de Medicina Tropical), o infectologista Marcus Vinícius de Farias Guerra, alerta: uma volta desordenada às aulas representa maior risco à segunda onda da covid-19, que a circulação de pessoas no comércio.
Na semana em que o Governo do Amazonas executa a primeira fase da reabertura sem declínio claro no número de infectados do estado, com a volta da circulação de pessoas no comércio e templos de igrejas evangélicas, o infectologista Marcus Guerra afirma que há necessidade de se organizar com planejamento, testagem e rígido controle sanitário o retorno de crianças e adolescentes às aulas presenciais.
“Vão ser responsáveis pela segunda onda que pode vir, se isso for feito de um modo desordenado (…) Se for nas escolas que começar tudo de novo, vai ter que parar”, declarou o infectologista ressaltando o que ocorreu na Coreia do Sul.
O País, considerado um modelo de controle da pandemia sem lockdown, determinou fechamento das escolas após breve retorno às aulas com a subida de registros de infectados.
Em entrevista ao programa Exclusiva rádio BandNews Difusora (93.7), esta semana, o diretor-presidente da FMT disse que o número de infectados e de óbitos pode voltar a acelerar se o retorno às aulas for desordenado.
Como Governo do Estado e Prefeitura de Manaus decidiram, por segurança, “segurar” a volta às aulas das unidades da rede pública, as cobaias que devem medir o potencial de gravidade da infecção nas unidades de ensino serão os estudantes da rede particular.
A previsão é que os mesmos voltem às aulas no dia 6 de julho.
O infectologista afirma que, até o momento, os estudos científicos não deixam claro se as crianças foram menos atingidas pela covid-19 por terem organismo resistente ou em função da proteção do isolamento em todo o mundo.
“A maioria dos trabalhos tem mostrado que as crianças são pouco afetadas. Eles (os estudos) só não dizem porquê elas são pouco afetadas, se é porque estão em casa, sendo protegidas e menos expostas”, disse.
Número de alunos que ficam em salas fechadas no Amazonas
De acordo com dados do site do Ministério da Educação, o Amazonas tem cerca de 1,2 milhões de estudantes no ensino básico. Os dados de 2019 indicam que a rede particular concentra 7,5% dos alunos.
A reportagem solicitou da Seduc (Secretaria de Estado de Educação) e da assessoria do Sindicato dos Escolas particulares a estimativa de alunos matriculados na rede particular, mas nenhum dos dois soube precisar os números – que deveriam estar sob o rígido controle sugerido pelo infectologista.
Na rede estadual, segundo a Seduc, são 440 mil estudantes estudantes matriculados, “sendo 220 mil na capital e a outra metade nos 61 municípios do interior”.
Nas escolas mantidas pela Prefeitura de Manaus, são 242 mil alunos. A volta às aulas envolve ainda a presença nas unidades de ensino do quadro de professores e funcionários administrativos.
Taxa de incidência e de mortalidade no AM é quatro vezes maior que a média nacional
De acordo com o último Boletim Epidemiológico da FVS (Fundação de Vigilância Sanitária), “a taxa de incidência média de covid-19 no estado do Amazonas é de 695 casos por 100 mil habitantes”. O número é quatro vezes
maior que a taxa média nacional, que é de 172,8 casos por 100 mil habitantes.
A taxa de mortalidade por covid-19 no Amazonas, que mede a ocorrência de óbitos na população, é de e 42,1 óbitos por 100 mil habitantes. Também quatro vezes maior que a mortalidade média do país, que é de 11,2 óbitos por 100 mil habitantes.
Nesta quinta-feira, dia 4, o Amazonas registrou 2.126 novos casos da doença provocada pelo novo coronavírus e 45 óbitos de pessoas que não resistiram à doença, que permanece sem vacina e sem tratamento.
O número de casos diários no Estado se mantém alto. Apesar disso, infectologistas avaliam que o reflexo da reabertura só será visto em algumas semanas.
Leia a entrevista na íntegra:
Rosiene Carvalho (RC): Qual sua opinião como infectologista: foi seguro reabrir para circulação de pessoas neste momento?
Marcus Vinícius Farias Guerra: Aqui está sendo medido o número de casos internados, o número de óbitos e o número de pessoas que estão se tratando em domicilio, e isso de fato diminuiu. O número de casos diário mostrado, por exame laboratorial confirmado, não significa (que o total de casos é) daquele dia. É um pool de exames que é feito e coletado em diversas áreas e diversos momentos que vai pro laboratório e o laboratório solta naquele dia. Teria de fazer uma contagem regressiva de caso a caso para saber que dia foi feito o exame, para dizer que os exames feitos naquele diz foram esses. Como agora com a agilidade, os exames estão sendo liberados mais rapidamente isso significa que estamos mais próximos do número de casos daquele dia que estão sendo anunciados.
Tem que levar em conta que a população vai ter acesso a vários outros locais de compras, de circulação, mas ela não pode se descuidar. O estabelecimento que está sendo aberto também tem que seguir regras de segurança sanitária. As pessoas têm de usar máscara, lavar as mãos. Se eu estou com infecção respiratória não vou circular. Vou ficar no distanciamento social recomendado. É isso que a população deve levar em conta.
Eu acho que a população mais vulnerável ainda vai ficar em casa, que são os escolares. Tem mais de mil escolas em Manaus e só vão ser liberados num futuro mais distante. Se não, vão ser responsáveis pela segunda onda que pode vir, se isso for feito de um modo desordenado.
“Tem toda uma cadeia de contatos que as crianças estarão expostas com o transportador, com o receptor administrativo na escola, com aglomeração para entrar e sair”
RC: O senhor acha que as escolas podem promover isso porque elas permitem uma aglomeração?
Marcus Vinícius: As salas de aula são pequenas e hoje a maioria das escolas tem ar-condicionado. As salas são fechadas, não ventilam. E as crianças são transportadas no transporte coletivo e ai tem toda uma cadeia de contatos que as crianças estarão expostas com o transportador, com o receptor administrativo na escola, com aglomeração para entrar e sair. Isso tudo vai ser estudado pelas escolas.
RC: Vejo amigos da minha filha com idade escolar combinando como vai ser o reencontro deles, na volta às aulas presenciais, prometendo longos abraços (risos)…
Marcus Vinícius: Como é que você vai controlar isso? Eu tenho duas netas que dizem isso. “Eu estou doida para encontrar minhas colegas”. E esse cuidado tem que haver. Eu acho que nesse momento que estão sendo abertos determinados estabelecimentos, devem adotar o mesmo que os supermercados fizeram: adotar cuidados à população e aos trabalhadores.
RC: Esse controle é mais fácil no comércio que nas escolas, por isso esse ameaça da segunda onda vir por este espaço?
Marcus Vinícius: Isso. Higienização diária dos setores pra que ele possa continuar funcionando, se não pode retornar tudo à estaca zero e não é isso que se quer.
O ar-condicionado em si não mostrou contaminação nele, porque pode ser lavado, purificado, mas deixa circular o vírus no ambiente e pode levar a outros locais.
RC: Ar-condicionado é um fator de alto risco nas escolas? É difícil abrir mão em Manaus por causa da condição climática…
Marcus Vinícius: Há um trabalho mostrando que a ventilação do ar- condicionado, se uma pessoa doente estiver na direção dele falando, leva o vírus para frequentadores de outras mesas. O ar-condicionado em si não mostrou contaminação nele, porque pode ser lavado, purificado, mas deixa circular o vírus no ambiente e pode levar a outros locais. Isso vai ser difícil de contornar nas escolas.
RC: O tempo de suspensão já se mostra com um prejuízo difícil de reparar e prolongar aumenta este efeito. Mas há mães e pais que voltaram a trabalhar e não têm onde deixar os filhos. Há um outro ponto de que as crianças não são grupos de risco, mas podem trazer o vírus para casa. Que orientação pode ser dada, na sua opinião?
Marcus Vinícius: A maioria dos trabalhos tem mostrado que as crianças são pouco afetadas. Eles (os estudos) só não dizem porquê elas são pouco afetadas, se é porque estão em casa e sendo protegidas e menos expostas, ou se porque têm um outro fator, que a criança desenvolve infecção menos grave.
A proteção das crianças tem sido maior do que nas outras faixas etárias, mas não há um número grande para se dizer que a exposição, sendo a mesma, as crianças estariam no mesmo número de infectados.
RC: Quer dizer que essa situação das crianças não estarem nas estatísticas como as mais infectadas, as mais atendidas em hospitais e entre os óbitos pela covid não garante que o organismo delas seja mais resistente à doença?
Marcus Vinícius: O mundo inteiro tem anotado isso aí. A proteção das crianças tem sido maior do que nas outras faixas etárias, mas não há um número grande para se dizer que a exposição, sendo a mesma, as crianças estariam no mesmo número de infectados.
RC: Que recomendação o senhor daria às escolas, mães e pais?
Marcus Vinícius: A mesma pergunta a minha filha fez com relação às minhas netas. Vou responder o que disse a ela. Acho que todos deveriam ser submetidos a um questionário, sabendo quem se infectou quem não se infectou, qual o extrato familiar que cada um convive. E a escola adotar desde a entrada, o sistema de sanitização, um tapete na porta das salas com água sanitária para as crianças limparem os pés e manter álcool em gel logo na entrada. E todas elas protegidas com a máscara para elas terem menos chance de se infectar. Se pudessem testar professores, administrativos para saber quem se infectou, quem é suscetível, isso seria interessante para ter mais segurança, qual é o nível de suscetíveis e os níveis de imunes. E todos os que estão com sintomas respiratórios não comparecem à escola.
RC: Qual a diferença entre letalidade e mortalidade?
Marcus Vinícius: Letalidade é: a gente mede a capacidade do vírus de matar quando infecta. E a mortalidade mede pelo número de indivíduos mortos em relação à população. Dez pra mil. A cada mil, dez morrem.
RC: Por que o Amazonas tem altos índices nos dois, acima da média nacional?
Marcus Vinícius: Foram bem maiores, estamos com uma taxa de 4,95%, nos últimos dados. Está se aproximando dos outros países. No interior é 2,97%. Mas nós vimos que a maioria dos pacientes que faleceram foram pessoas com graves comorbidades, que já conheciam ou não conheciam e só foi detectado no momento da infecção pelo covid . Há um número expressivo de pacientes com comorbidades dentre esses que faleceram.
“Acho que (os municípios do interior) vão adquirir um status da imunidade mais rápido que Manaus pelos números que temos.”
RC: Com relação à segunda onda, o senhor falou da preocupação com o retorno das aulas. O senhor acha que nós estamos mesmo suscetíveis, e em que grau, a essa segunda onda? Interior também pode gerar problemas como o que vimos em Manaus?
Marcus Vinícius: Veja bem, o interior já ultrapassou o número dos casos da capital. A população do interior é mais dispersa. Acho que só duas ou três cidades com mais de 100 mil habitantes. Acho que a disseminação foi grande, talvez vai ser maior que Manaus em relação à infecção. Acho que vão adquirir um status da imunidade mais rápido que Manaus pelos números que temos. Não estou falando em probabilidade, em cálculos estatísticos. O que a gente sabe é que de cada dez que adoecem, oito são assintomáticos e dois são sintomáticos. Os assintomáticos não estão nessa estatística que a gente está falando. Se fosse multiplicar seriam 370 mil casos.
RC: O senhor acha que essa segunda onda é algo que deva nos preocupar?
Marcus Vinícius: Sim, o sistema de saúde e o de vigilância epidemiológica deve estar atento para detectar rapidamente o aparecimento de novos casos e a geodistribuição dos casos, para detectar onde está mais vulnerável e também a faixa etária que ela pode estar acometendo. Se for nas escolas que começar tudo de novo, vai ter que parar.
“O sistema já aprimorou e melhorou bastante a assistência aos pacientes. Também melhoram os recursos hospitalares e laboratoriais e isso tem promovido maior segurança no sistema de saúde.”
RC: No início da pandemia, havia um medo grande, porque não tem vacina e nem um protocolo de tratamento disponível. Nos últimos meses o senhor acha que essa realidade alterou, sobre tratamento? Ainda que não exista um protocolo claro, os médicos sabem como tratar ou é absolutamente inseguro?
Marcus Vinícius: Existe todo um maior conhecimento do evoluir da doença, portanto o sistema está mais preparado para se antecipar a eventos que possam ocorrer durante o desenvolvimento de cada caso porque, de suporte que deve se dar a cada indivíduo. Então isso, com certeza, o sistema já aprimorou e melhorou bastante a assistência aos pacientes. Também melhoram os recursos hospitalares e laboratoriais e isso tem promovido maior segurança no sistema de saúde. Acho que nessa parte, nós como um todo, o mundo todo tem trabalhado no sentido de produzir informações para que quem está diante do problema possa tomar medidas terapêuticas mais eficientes. Os pacientes que ficam mais dias no hospital, ficam mais tempo entubados, todos esses são sujeitos a adquirir outra infecção inclusive bacteriana. Isso tem sido visto com antecedência para não haver superinfecção.
“Eu acredito que um comitê facilita muito a decisão, tanto para a população quanto para a decisão governamental.”
RC: O senhor acha que deveria existir um comitê permanente, com cientistas de várias áreas de conhecimento, para auxiliar ações de estado, administrativas, decisões de reabertura, fechamento, se este ciclo se impuser?
Marcus Vinícius: Eu acredito que um comitê facilita muito a decisão, tanto para a população quanto para a decisão governamental. Comitê permite que haja sempre uma segunda ideia, um debate e o aparecimento de ideias mais concretas para que possa ser operacionalizada rapidamente. Cada membro do comitê pode ter um nível de informação importante para decisões que venham a facilitar uma melhor condição de vida à população. Não dá para ser a ideia de uma pessoa só.
“Há poucos dias eu fui até irônico com os colegas, disse: eu nunca vi tanto infectologista na minha vida. (…) Tem muita gente “especialista” que não é, mas se acha capaz de fazer algumas recomendações que ao invés de ajudar, atrapalha.”
RC: Há estudos e pesquisas saindo de lados diferentes. Pessoas que não são especialistas na área, cada um dando um dado que a gente não sabe o que quer dizer realmente. Acho que a população se sente desnorteada…
Marcus Vinícius: Há poucos dias eu fui até irônico com os colegas, disse: eu nunca vi tanto infectologista na minha vida. Nossa residência existe desde 1981 e nós não formamos 50. Oferecemos oito vagas por ano e às vezes tem um candidato, mas eu vejo que no Facebook, no Whatsap, tem gente colocando palpite em todo o canto como se fosse infectologista, como se entendesse de infecção. E também até epidemiologista, que é outra área que poucas pessoas se dedicam a formar-se, porque são profissões que ganham bem menos. Costumam dizer para a gente: “vocês vão se especializar em doença de pobre”.
E, infelizmente, estamos vendo muita gente querendo meter suas ideias e até impor diante de situações que é o infectologista que vive no dia a dia. Nós, por exemplo, já passamos por onze epidemias desde que o Tropical existe. Todas elas a gente conseguiu a curto, médio ou longo prazo controlar e diminuir. Agora, tem muita gente “especialista” que não é, mas se acha capaz de fazer algumas recomendações que ao invés de ajudar, atrapalha.
RC: Quantas vagas são oferecidas por ano?
Marcus Vinícius: Oito. Nós, este ano, tivemos só um candidato. Às vezes tem quatro, mas dois desistem no meio do caminho. De 81 pra cá, de 83 pra cá o número de formandos é pequeno em relação à quantidade. E veja bem, os candidatos que vem pra cá nem são amazonenses, ou nem foram formados pela Universidade do Amazonas e aqui ficam. Temos poucos infectologistas.
RC: Os formados aqui são requisitados e prestigiados internacionalmente?
Marcus Vinícius: Sim. Sem dúvida. Tem mercado de trabalho. E hoje em dia não ficamos só na parte da especialização, a gente oferece a pós-graduação com mestrado, doutorado, pós-doutorado, professores, pesquisadores e outras atividades que eles possam desenvolver. Mesmo assim a procura é pouca para a área de especialização na área de infectologia. Na área de infectologia pediátrica tem bastante concorrente. Na área de dermatologia tem bastante concorrente. Mas é desanimador ver o número de candidatos para fazer infectologia aqui.
RC: O senhor quer fazer suas considerações finais?
Marcus Vinícius: Quero reforçar à população que essa liberação não significa deixar de usar máscara, tem que fazer higiene pessoal, principalmente das mãos, não colocar as mãos na boca, nariz e olhos. Tem que ter bastante cuidado. Já falei uma vez que as pessoas levantam os óculos para falar com os outros, põem os óculos na cabeça e o cabelo pode infectar e trazer para os olhos de novo e é uma porta de entrada. A gente tem que se educar para não fazer isso.